09 junho 2007

OS PASSOS DE RICARDO REIS ( segundo o romance "O Ano da Morte de Ricardo Reis" de José Saramago) - dia 16 de Junho


Num dia cinzento de Janeiro de 1936 Ricardo Reis vai à bilheteira do Teatro Nacional comprar uma poltrona para a peça Tá Mar de Alfredo Cortez. Dona Palmira Bastos é Ti Gertrudes, Dona Amélia Rey Colaço faz de Maria Bem e Dona Lalande de Rosa. Mas pouco lhe interessa a arte de tão notáveis actrizes ou a excelência da dramaturgia em cena. Ricardo Reis não vai ao teatro pela arte de Talma e de Sara Bernhardt, vai por Marcenda, com quem se quer fazer encontrado, pois sabe de fonte certa que ela ali estará nessa noite, na companhia de seu pai, assistindo à representação da peça sobre a vida dos pescadores da Nazaré.
Ricardo Reis nem repara no elegante edifício neoclássico – a casa de Garrett. Se não tivesse a alma e os sentidos embotados pelo orvalho do amor, daria conta da beleza do pórtico da fachada – de seis colunas jónicas – que suporta um frontão triangular encimado pelas estátuas de Gil Vicente, ao centro, e de Talia e Melpómene nos extremos. E veria no frontão o tímpano esculpido representando Apolo e as Musas. Ricardo Reis, como poeta clássico, é íntimo de todas as musas, especialmente das suas, com os nomes de Neera, Cloe e Lídia.
Antes de ir para o teatro, à noite, ainda sente na pele as delícias carnais de Lídia ( não se trata da musa, mas da criada do hotel); come um bife no Martinho do Rossio, assiste a uma partida de bilhar – tudo coisas tão vulgares, tão comezinhas, que nem parecem de um poeta que trata por tu os metros de Horácio, que convive com as odes de Safo, Píndaro e Alceu.
Um homem na mudança da idade atrás de um rabo de saia de vinte e três anos! Bem lhe chegou Fernando Pessoa numa das suas extraordinárias aparições.
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Manuel Nunes

2 comentários:

João António disse...

Este dia 16 de Junho de 2007, um sábado, com muita chuva, ficámos «os cinco encharcados», de água mas também de poesia e no tudo que ela encerra: amizade, contemplação e o que de esplendoroso a boa literatura nos oferece. Para a Graça, Cristina, Paula e o incansável Manuel, vai o meu abraço de amizade e agradecimento, pelos momentos que vivemos debaixo dos tectos de chuva dos templos e das tascas.
Fico à espera de outro passeio temático, tão belo quanto este, em que uma Lisboa, conquanto cheia de «latas» pode proporcionar a um olhar atento momentos de prazer.
João António

Graça Conceição disse...

Perseguindo Ricardo Reis:
Foi um maravilhoso dia de chuva, de poesia, de partilha, entre amigos. Sem chuva, ela própria uma personagem que não larga Ricardo Reis, a nossa "perseguição" não teria sido tão envolvente, tão "real". Assim, senti que Ricardo Reis esteve sempre connosco... ouvindo-nos e encharcando-se, claro!O momento de poesia proporcionado pelo Manuel ao lado do Adamastor e o saber simbólico do João na visita à Igreja de S. Roque, são inesquecíveis. Mas a alegria e os conhecimentos da Cristina e da Paula também foram decisivos.