15 agosto 2007

"AS HORAS NUAS" - Lygia Fagundes Telles


SEI APENAS AQUILO QUE UM GATO PODE SABER. Mas digo que para entender a alma duma mulher não chega às vezes a vida dum homem. Nisso terei eu algumas vantagens com as minhas vidas múltiplas: compreender uma mulher como esta, dona de mim mesmo, que me mandou castrar para que fosse só seu e de mais ninguém – Rosa, Rosa Ambrósio, Rosana, actriz que pisou os palcos da glória, agora um pouco envelhecida, ainda por cima alcoólatra, ou alcoólica, nem a terapia lhe tem valido. Rosana perdeu homens: Miguel, o primeiro amor, chamado na juventude ao convívio dos deuses; Gregório, o legítimo, embora já dormissem em camas separadas, levado por um enfarte que foi um suicídio; Diogo, o secretário, muito mais novo do que ela, saído da sua vida pelo próprio pé. Por isso vive quase só, comigo e com uma empregada, a Diú, já que com Cordélia, a filha, não pode contar. Cordélia, uma jovem com uma singular atracção por homens velhos, todos na casa dos sessenta, velhos perversos a quem falta o vigor e a honestidade do amor juvenil. Minha filha, coitadinha, não deixe que eles se babem sobre as suas carnes, não permita que façam porcarias consigo – mas isto não sou eu que digo, é uma dor que Rosana tem dentro de si, é um grito dela. De todos os amantes só Diogo sabia declinar-lhe o nome: ROSA ROSAE. Talvez por isso tenha sido tão custosa a separação.



Rahul. Rahul é o meu nome. Já tive vidas de gente, já fui menino numa moradia de venezianas verdes, ou de persianas verdes, vivi um singular episódio de amor numa casa com átrio, peristilo e um jardim florido onde havia uma mesa com tampo de mármore e pés de bronze imitando patas de leão. Outras eras. Vestia uma túnica e era jovem. Hoje sou uma bola de pêlo com patas almofadadas, língua rugosa, um sexo inexistente e estes olhos da alma atravessando os tempos.



Ananta Medrado, trinta e um anos, virgem, é a psicanalista que assiste Rosana. O cavalo do desejo à desfilada no corpo, ou no andar de cima onde habita um misterioso vizinho, ou dentro da alma, lugar onde acontecem tantas coisas que não sabemos explicar. Quem poderia imaginar ao vê-la assim com a sua bata de médica, sentada no consultório à cabeceira do divã, tratando a minha dona – uma diva no divã – fazendo correr o rio das palavras na memória dos afectos perdidos? Ananta desapareceu e nunca mais foi encontrada, o assunto está na Delegacia das Pessoas Desaparecidas. Um problema. Não, um teorema. Um teorema é um problema onde metemos Deus: teo + rema. Isto dizia Gregório, o meu dono, um ataque cardíaco que foi suicídio. Ananta desapareceu para se refugiar em algum lugar a domar o cavalo bravo do desejo, trinta e um anos, ninguém a castrou, isto é o que pensa Rosana, a minha dona.



Tenho saudades de Gregório. Antes de Rosana desfazer as estantes e dar sumiço nos livros ainda vinha pela noite visitar o refúgio da biblioteca. Eu deitava-me na transparência das suas pernas, ronronando a minha asma como uma chaleira fervente, e mesmo assim parecia que me sentia e afagava-me o dorso peludo com a nuvem da mão. Depois desapareceu de vez. Tenho saudades de Gregório, tenho saudades de tudo o que fui. Hoje sou um simples gato saído de um livro para falar de uma história.



Uma história? Nem tenho a certeza.




( Publicado em www.sonhocomandavida.blogspot.com em 15 de Julho de 2006 - M. Nunes )

3 comentários:

João António disse...

Romance entretecido de fugas, no tempo e no espaço. Exige do leitor, adesão à contextualização narrativa.
É quanto a mim, para além da história comum do nosso tempo, um bom exercício para aguçar a inteligência.
Também lança mão de princípios « inacção na acção; morte/ressurreição; amor/traição etc.» transversais à Humanidade.

Anónimo disse...

eu estou fazendo um trabalho so bre a Lygia f.Telles
gosto dos seus contos

Anónimo disse...

Que história maldita. Sem começo, meio ou fim!!!