26 dezembro 2010

As raparigas lá de casa

"Duas irmãs" - Fernando Botero
Como eu amei as raparigas lá de casa

discretas fabricantes da penumbra
guardavam o meu sono como se guardassem
o meu sonho
repetiam comigo as primeiras palavras
como se repetissem os meus versos
povoavam o silencio da casa
anulando o chão os pés as portas por onde
saíam
deixando sempre um rastro de hortelã
traziam a manhã
cada manhã
o cheiro do pão fresco da humidade da terra
do leite acabado de ordenhar

(se voltassem a passar todas juntas agora
veríeis como ficava no ar o odor doce e materno
das manadas quando passam)
aproximavam-se as raparigas lá de casa
e eu escutava a inquieta maresia
dos seus corpos
umas vezes duros e frios como seixos
outras vezes tépidos como o interior dos frutos
no outono
penteavam-se
e as suas mãos eram leves e frescas como as folhas
na primavera

não me lembro da cor dos olhos quando olhava
os olhos das raparigas lá de casa
mas sei que era neles que se acendia
o sol
ou se agitava a superfície dos lagos
do jardim com lagos a que me levavam de mãos dadas
as raparigas lá de casa
que tinham namorados e com eles
traíam
a nossa indefinível cumplicidade

eu perdoava sempre e ainda agora perdoo
às raparigas lá de casa
porque sabia e sei que apenas o faziam
por ser esse o lado mau de sua inexplicável bondade
o vício da virtude da sua imensa ternura
da ternura inefável do meu primeiro amor
do meu amor pelas raparigas lá de casa.
Emanuel Félix, poeta açoreano
(poema extraído do livro «Habitação das Chuvas»)
Obrigado ao Helder, por nos ter enviado esta pequena (grande) preciosidade!

24 dezembro 2010

CARTA AO PAI NATAL

Ex.mo Senhor,
Devo dizer-lhe, em primeiro lugar, que não encontrará nesta carta as expressões afectuosas e de submissa pedinchice que está habituado a receber dos seus inúmeros admiradores espalhados por todo o orbe. De facto, não só não nutro qualquer simpatia pela rotunda e esdrúxula pessoa de V. Exa., como, por razões que adiante compreenderá, não me é permitido aceitá-lo como representante supremo desta época festiva em que nos habituámos a viver e a comemorar o nascimento do Filho de Deus.
Certamente se recordará que na meninice dos homens e mulheres que, neste país, têm hoje cinquenta e mais anos de idade, nunca a pessoa de V. Exa. era chamada para a entrega de prendas ou brinquedos na noite mágica de Natal. Tínhamos para isso uma figura bem mais credível e ajustada à quadra – o Menino Jesus – a quem não escrevíamos cartas, pois tratando-se de um recém-nascido não poderia naturalmente lê-las, mas a quem rezávamos de joelhos no chão, junto às chaminés de nossas casas, pedindo o carrinho de corda, o triciclo, a boneca de cartão ou os chocolates. A personalidade de V. Exa. era praticamente desconhecida das nossas infantis pessoas, só nos chegando notícia sua, eventualmente, através de algum postal de boas-festas remetido do eldorado americano por um qualquer parente ali emigrado.
Nestas últimas décadas, beneficiando da cumplicidade dos poderes constituídos, tem V. Exa. assumido a representação simbólica do Natal. Paulatinamente, como quem não quer a coisa, foi matando o Menino Jesus que sempre habitara os nossos sonhos de criança – um crime tão bárbaro e nefando como a própria morte do Jesus adulto – insinuando-se junto das novas gerações através de agressivas campanhas de publicidade organizadas pelas grandes multinacionais dos electrodomésticos, das consolas, dos jogos de computador e de toda a classe de brinquedos. V. Exa. vendeu a ternura do Natal aos capitalistas da SONY e da NITENDO, aos fabricantes de sonhos de latão e aos oragos anunciadores de promessas de felicidade descartável. Quem o quer ver é a enviar as suas legiões de clones para a porta das superfícies comerciais, incentivando o consumo desregrado, promovendo o endividamento das famílias e assediando as criancinhas com beijos babados de infame consumismo.
Acresce que a figura e os modos apresentados por V. Exa. são do mais grotesco que se pode imaginar. Ri de uma forma estúpida e desconchavada, veste um fato ridículo que mais parece a farpela dum palhaço, não faz a barba, há quem diga que cheira mal dos pés, e, suprema ironia, garantem-nos que desce pelas chaminés para distribuir as prendas e os brinquedos, quando, com a gordura que ostenta, nem pela porta da garagem seria capaz de passar. Depois, contam-nos que viaja num trenó puxado por renas, entre a Lapónia, sua terra de origem, e os lares de cada um de nós, quando é sabido que tal trenó não existe, é pura ficção para dar um toque de romantismo à sua existência árida, pois as únicas viagens que faz, sabemo-lo bem, fá-las de avião entre as grandes praças financeiras, controlando a evolução dos seus negócios e recebendo as chorudas comissões que lhe são atribuídas pelos fabricantes de brinquedos e de electrodomésticos de todo o mundo.
Não tenho dúvidas que, com V. Exa., o Natal, na sua pureza, está irremediavelmente perdido. Porque o Natal não pode ser este falso esplendor de bens de consumo, sabiamente regido pelos interesses do capitalismo industrial e financeiro. O Natal não pode ser este vazio de alma, este deserto de emoções em redor da mesa farta e de uma árvore, dita de Natal, reverberando luminárias espúrias contra a luz verdadeira da estrela de Belém. Não bastava ter V. Exa. arrancado o Menino Jesus do coração dos homens; era preciso também que os reduzisse, como escravos, a um mero instrumento dos seus desígnios de lucro e enriquecimento ilegítimo.
É por tudo isto e pelo mais que se não diz por ser verdade – cito aqui, de cor, o poeta da Pedra Filosofal – que lhe escrevo estas modestas mas inflamadas linhas, como vivo protesto de quem não se conforma com a ditadura materialista que V. Exa. representa.
Sem outro assunto de momento, e na esperança de topar o menos possível com as execrandas réplicas de V. Exa. que por aí pululam neste período natalício, subscreve-se,

Este que sinceramente o abomina,



(Publicado no blogue "Disperso Escrevedor" em 10 de Dezembro de 2006)

17 dezembro 2010

PROTEU - a propósito de alguém ter apodado de proteiforme a personagem Julian Garmony do romance "Amesterdão"


Deus marinho da mitologia grega, Proteu é filho de Poseidon e de Tétis. Tornou-se guardador dos rebanhos de seu pai, isto é, dos grandes peixes, das focas e dos monstros marinhos.
Este deus-pastor, segundo Eurípides, era rei da ilha de Pharos, no Egipto, onde foi construído o Farol de Alexandria, uma das sete maravilhas do mundo antigo. Proteu tinha o dom da profecia e o poder de se metamorfosear para escapar aos perseguidores ou a quem o buscava para saber os acontecimentos futuros. Se alguém conseguisse vencer o medo perante as formas horríveis e terríveis que assumia, ele revelava a verdade, como sucedeu com Menelau, o rei de Esparta, que queria saber se e como podia voltar à sua terra, após a guerra de Tróia.
O Padre António Vieira, no Sermão de Santo António aos Peixes, na crítica ao polvo, recorda as transformações extravagantes desta figura mitológica quando diz "as figuras, que em Proteu são fábula, no polvo são verdade e artifício."


(Infopédia da PORTO EDITORA - www.infopedia.pt/$proteu)

12 dezembro 2010

MOLLY LANE

Diz-se que em Culloden, lugar da carnificina
de que fala Hélia Correia em Lillias Fraser,
o fantasma dum guerreiro derrotado costuma
atravessar as noites com o seu lamento de sombra.

E em Tantallon Castle, por mais incrível que pareça,
há quem tenha conseguido fotografar
a tenebrosa aparição de um espectro.

Nada disto afligia Molly na noite
daquele Natal de setenta e oito
quando se divertia com os amigos
num inócuo castelo da Escócia.

À hora em que os fantasmas saíam, vogando
descoloridos sob os tectos das casas,
e o vento gemendo nas highlands
crivava de inquietação
os dedos líquidos dos lochs,
ela ria-se das sombras pálidas dos mortos,
dançando nua sobre uma mesa de snooker.

08 dezembro 2010

Nessun Dorma em Amesterdão de McEwan



“…A Comissão considerada de gostos medíocres pelo meio musical, ansiava acima de tudo, por uma sinfonia da qual se pudesse extrair pelo menos uma melodia, um hino, uma elegia para o caluniado século que findara que pudesse ser incorporada nos eventos oficiais, tal como nessun dorma o fora, num campeonato de futebol…” in Amesterdão de Ian McEwan.

04 dezembro 2010

HERBERTO HELDER - "O AMOR EM VISTA"

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.


Cantar? Longamente cantar,
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas,
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.

Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.
Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;
e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.


Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.


(…)

É apenas um fragmento do poema. Alguém o terá de ler para nós, por completo, numa próxima tertúlia.

Palavras para que vos quero (4)

Desabafo!

Faz frio.
Sinto-o no corpo
e na alma...
Faz frio.
Procuro o conforto
de um agasalho
ou de um abraço...
Faz frio.
Desejo o calor
de uma lareira
ou de um corpo...
Faz frio.

Porto, Dezembro 2010

02 dezembro 2010

"AMSTERDÃO" de Ian McEwan

Li ontem o primeiro capítulo e entristeceu-me a morte prematura da heroína. Pergunto-me: qual é a diferença entre os homens que amaram Evelyn Cotton e os amantes de Molly Lane?  Verei isso depois, mais sobre a data da sessão da nossa Comunidade: quinta-feira, 16 de Dezembro                                

01 dezembro 2010

Palavras para que vos quero (3)

Texto de CRISTINA LEIMART, publicado no blogue "Emoções Básicas"

O fim



Começo pelo fim.

Começo ciente de não saber dizer, do fim, onde começa ou onde acaba. Começo confusa como em criança, diante do primeiro livro sem bonecos, ao ouvir "Agora nada de ires ver o fim.."

O fim? Qual fim? Salto a capa do livro, cheio de personagens que ignoro, jogadas em enredos que sobrevoo a jacto directamente das palavras do adulto para uma busca desenfreada: Ah não é para ler o fim?

Procuro-o numa curiosidade urgente, com critério e coragem, atrás do sofá pequeno disposto de esguelha junto à janela da sala de visitas. Procuro-o nessa tarde nesse livro sem capa, título ou princípio, como depois noutros livros com e sem bonecos. Procuro-o noutras tardes, noutras idades e cidades, nos meus cantos preferidos das casas onde vivi e, enquanto vivi longe, em cantos alheios onde não me perdia nem me escondia. Procurei-o, por acaso e sem autorização, nos livros de amigos, de namorados e conhecidos. Nas histórias dentro da minha história, o tempo levou-me à procura já não dos fins, mas de exemplos que desmontassem a certeza daquele princípio de leituras, num livro ainda folheado confusamente aos últimos pingos de luz do dia:

"Agora nada de ires ver o fim" é o cuidado adulto mais infantil. Ninguém corre o risco de anular o magnetismo da leitura galgando sofregamente direito ao fim. Não saberíamos onde poisar essa pegada de gigante enjoado do presente. Não há pontaria capaz de acertar no fim à distância. Não estão inventados gps para os desfechos.

Não podemos saber se o fim está na última página ou na última frase. Ou nas duas últimas frases. Ou a partir do início do último capítulo. Talvez na primeira linha da primeira página, ou algures a meio do volume, se o autor aposta em anacronias? Não sabemos, às vezes o autor sabe, eu não sei.

Eu sei que o pano cai quando passo a mão pela contracapa. Sei que a ficha técnica já desliza lentamente quando reclino a cabeça para trás e desfoco o olhar. Mas para ouvir o último suspiro da história eu não tenho hipótese de usar uma tele. Eu sou o batedor. Tenho de aceitar a lentidão da imagem revelando-se na penumbra de laboratório fotográfico, ou sujeitar-me ao embate de um fim salteador num troço do caminho quando menos espero.

De uma forma ou de outra, estamos seguros. Não há perigo de frisarmos o sagrado fio da história com a brasa da impaciência.

Num livro (e na vida, tão nossa como tão pouco nossa, o que nada interessa aqui), nunca sabemos onde começa, por isso não sabemos onde está, o fim. A única certeza é a surpresa.