05 junho 2011

UM ENLATADO sobre "Madame Bovary" AINDA DENTRO DO PRAZO DE VALIDADE

Em 2008, num dia de Agosto em que tinha razões para andar aborrecido, coloquei esta prosa azeda num blogue de estimação. Ao ver hoje a lição do Professor Samuel Titan (Universidade de São Paulo) lembrei-me de a repescar.


A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( VI )


Encontramos em Madame Bovary um episódio impressionante, de uma obscenidade excessiva, que atira o adultério de Emma e a perfídia dos seus amantes para o plano singelo das coisas comuns. Trata-se da operação ao pé boto do infeliz Hippolyte, um “acto médico” de Charles Bovary que acarretou ao paciente a consequência natural de uma gangrena: a amputação da perna.
Dificilmente se encontrará em outro romance, como neste de Gustave Flaubert, um libelo tão impiedoso contra os charlatães da medicina.
Dir-se-á que se estava no século XIX, tempo de ideais e filosofias mas de limitado progresso das ciências médicas. É verdade. De resto, não faltam casos de convicções pseudocientíficas na ficção literária de Oitocentos. Veja-se, por exemplo, O Primo Basílio e a morte de Luísa, a “febre cerebral” de que foi acometida, sendo-lhe rapada toda a cabeça para mais eficaz resultado das compressas húmidas com que pretendiam debelar-lhe o mal. Veja-se o uso indiscriminado das flebotomias, a crença nos resultados dos sinapismos e das ventosas, as garrafas de medicamentos preparadas por génios de botica do tipo Eusébio Macário.
A negligência médica de Charles Bovary foi instigada pela inanidade científica do farmacêutico Homais. Ainda hoje os grandes erros médicos resultam, na maioria dos casos, de uma conjugação de equívocos entre a medicina e a farmacêutica – uma indústria poderosa que delapida milhões em estratégias de marketing perante a postura reverencial de investigadores e instituições universitárias. O corrupio de delegados de propaganda médica à porta dos consultórios e os congressos organizados em hotéis de luxo configuram uma medicina submetida à lógica do lucro, onde conta mais o dinheiro que a felicidade das pessoas. E não devia ser assim.

9 comentários:

Magra Patalogica disse...

Infelizmente, ainda continua a ter validade. Como diz o Professor Titânico, Charles e medíocre em tudo. Pobre Madame Bovary, a morrer frustada de tudo...

Madame Bovarenha disse...

Vamos com calma: o nosso Charles, pelo que me foi dado observar até onde pude chegar, é apenas oficial de saúde, não um médico graduado. Eventualmente terá excedido as suas competências ao efectuar uma cirurgia do calibre descrito, o que, efectivamente, não abona a seu favor, agravando, pelo contrário o juízo que se possa fazer. No entanto, na minha opinião, as complexas redes de interesses ligadas à saúde, na origem de situações pessoais igualmente dramáticas, põem a um canto as descritas na literatura, paradigmáticas de um passado pre-científico e que o meu amigo muito bem evoca no seu escrito.

Manuel disse...

Sim, Madame, o homem não tinha o grau de doutor, mas exercia medicina legalmente, tanto que até foi substituir um velho médico lá em Tostes. No colégio para onde o pai o mandou estudou anatomia, fisiologia, psicologia, etc., matérias essenciais para exercer a arte. Era um "officier de santé" diplomado. - É o que mais temos por aí, oficiais diplomados que nos tratam da saúde!
Registei e apreciei a leitura atenta que está a fazer. Outra coisa não seria de esperar.

Mademoiselle Naïf disse...

Oh le pauvre Charles, il faut avoir de la pitié avec lui …. quand même …

Custódia C. disse...

Folgo em ver que este blog continua muito bem frequentado.
Não me posso alongar no comentário, uma vez que ainda mal travei conhecimento com o atrapalhado Charles. Avancemos pois, na leitura!

PS: Há enlatados que duram para a vida...

Heloïse B. disse...

A menina desculpe (não a conheço, mas parece-me mais naïf que a sua colega de blog...): qual é o enlatado que não tem prazo de validade?

Custódia C. disse...

A menina Heloïse B (chiquérrimo!)não me interprete mal!
Eu não disse que não têm prazo de validade, mas sim que têm o prazo de uma vida inteira ....
Há enlatados que duram, duram ....

Maria do O. disse...

ôlhem, madames e mademoiselles, e se lessem o livrinho completo, o analisassem e debatessem, não seria mais interessante?

Rodolfino B. disse...

Ora aí está o silêncio da leitura...sabiam que a leitura silenciosa entrou nos hábitos ocidentais (sim, porque este é o nosso legado)depois da invenção do códice? Isso, o antepassado do nosso amigo Livro: quer dizer, em vez daquela trabalheira de enrola-desenrola (que nem devia dar uma grande vontade de ler, ou escrever, e isto para não falar das tabuinhas enceradas...), tínhamos enfim umas folhas (papiro ou pergaminho), dobradas a meio e cozidas umas às outras pela dobra...eram cadernos! Nos últimos dias tenho ouvido múltiplas queixas contra a letrinha formiguinha das edições de bolso da nossa fabulosa M. B. Ora imaginem a nossa comunidade no século IV, por exemplo, e não havia de ser aqui; já constariam por cá os nossos antepassados, mas, a não ser que pertencessem a algum grupo social privilegiado, nem sonhavam que o Livro era possível! (E já agora nós: sonhamos com quê, para além de um possível Fahrenheit 451? Que livro vivo serias tu?)