30 agosto 2011

BOSCH E A RETÓRICA DO DESEJO





Na visita que se impunha ao MNAA, com a intenção de revisitar o Tríptico de Hieronimus Bosch — As Tentações de Sto Antão (c.1500), desta feita em destaque, pela presença de outras duas obras congéneres, aproveitei para, mais demoradamente, me perder no labirinto daquelas paisagens de ficção delirante.

Esta exposição, realizada em parceria com o Museu Groeninge (Bruges, Bélgica), coloca o Tríptico das Tentações de Santo Antão do MNAA criticamente em confronto com o Tríptico do Juízo Final e o Tríptico das Provações de Job, ambos da colecção do museu de Bruges”.

Estas duas obras serão, uma, provavelmente da mesma escola e a outra de um continuador da sua inventiva. Do confronto que nos é proposto, ressalta naturalmente a superioridade do “nosso” Bosch, uma obra espantosa que ninguém sabe como veio parar a Portugal, a Lisboa, mais propriamente. Mesmo que nos pareça atraente pensar que foi pela mediação de Damião de Góis.
Podemos, no entanto, considerar que este confronto seria um pouco diferente se tivéssemos, por exemplo, O Jardim das Delícias, do Museu do Prado, ou outra pintura igualmente emblemática do mesmo autor, nomeadamente entre as que, para além desta, Filipe II de Espanha (I de Portugal), terá coleccionado e encomendado a Hieronimus Bosch. É aliás interessante notar a surpresa que o rei manifesta a suas filhas (Cartas para Duas Infantas Meninas: Portugal na Correspondência de D. Filipe I a suas Filhas, 1581-1583), descrevendo a grandiosidade e sobretudo as figurações, pantominas e espectáculos, que a procissão anual de Corpus Christi, em Lisboa, incluía. Ele lamenta que os filhos não possam também apreciar vários aspectos originais da procissão, incluindo os diabos, que lhe recordam as figuras de Bosch.
Podemos então pensar que o rei identificava na procissão o mesmo espírito que o fascinava no imaginário que o pintor lhe proporcionava: espírito que marcava talvez um fim de época— o artista traduzia, libertando-os através da obra de arte, os medos, o pavor do desconhecido, que a Idade Média preservava, evitando enfrentá-los.
É como se descobrisse (e nós com ele) que, afinal, o verdadeiro desconhecido mora dentro de cada um e é revelado pela expressão possível da luta insana entre os desejos e a sua realização, entre os desejos e a sua repressão. Sendo que nada disto é humanamente controlável e manifesta-se sempre como um mundo às avessas, eventualmente produto de lucubrações oníricas, lá, onde o inconsciente se revela. Por isso reina uma intensa confusão, como uma perda generalizada de identidade— o pobre santo, no centro da turbulência, parece quase resignado.
A dualidade escatológica, Bem e Mal, Paraíso e Inferno, presente nas três obras, resulta realisticamente misturada, porque aquelas duas faces estão tão interligadas, que uma começa onde a outra parece não ter acabado. Exactamente como na vida. Mesmo que se nos deparem horizontes, comuns aos três Trípticos, de promissoras auroras, a que se sucedem incendiados entardeceres apocalípticos, e as situações a que correspondem— o desejo, a tentação, a luta interior, a superação ou a queda, e a respectiva iconografia, que é como quem diz, os seus demónios. E, enquanto o Juízo Final apresenta um ensaio de redenção, iconograficamente marcado pela centralidade do Cristo Pantocrator, o que encontramos seguramente nestas obras é um discurso pictórico, ficção aberta a muitas leituras; fábula, alegoria, delírio metafórico, lugar comum de muitos imaginários, obra sem data. Para usufruir Hoje.

27 agosto 2011

UM ESCRITO BACALHOEIRO

Os meus romances, no fundo, são franceses, como eu sou, em quase tudo, um francês, - excepto num certo fundo sincero de tristeza lírica que é uma característica portuguesa, num gosto depravado pelo fadinho, e no justo amor do bacalhau de cebolada.

(Eça de Queiroz, de uma carta a Oliveira Martins)

23 agosto 2011

UMA FAINA (AINDA) MAIOR

UMA FAINA (AINDA) MAIOR

Enquanto me afasto até à distância regulamentar do barco-mãe, o imponente lugre, no pequeno Dori que me foi atribuído, remando automaticamente através da bruma matinal, vou remoendo peripécias da vida que me trouxeram até aqui. Lanço a pequena âncora; o ruído surdo do desenrolar da corda sobrepõe-se por instantes ao chape-chape da ondulação contra o casco de madeira da frágil embarcação.
A extensão de mar e a névoa que varre a superfície gelada destas águas setentrionais, onde tudo me é tão alheio e tão estranho, puseram uma distância real e arrepiante de solidão atroz, entre mim e o pequeno mundo de segurança, porto oscilante que não posso perder de vista, o navio de quatro mastros, de velas arriadas, balançando docemente à viração, como se fosse uma miragem.
Por instantes julgo poder ainda distinguir-lhe o nome, impresso lateralmente à proa: “Biblioteca do Bacalhau”.
Pelas abertas do nevoeiro, que ameaça cerrar-se, diviso os meus companheiros de faina— lá está o João Grandão, o dirigente sindical que em segredo nos vai industriando para a luta por melhores condições de trabalho e salários, contra a prepotência dos Henriques Tendeiros... mas o que é isto? Tenho de me despachar, começar a faina, pôr as armações a funcionar! Ali andam, o Carlão, a Cristalina, a Custóia, a Ardete, a Manola e os outros, nos seus botes, já atarefados a lançar as linhas e eu aqui, a perder-me em conjecturas!
Ainda corro o risco de acabar a faina e do cimo da amurada o capitão, o Manuel Tunes, a avaliar a olho a pescaria, me dizer: que é lá isso? Volta para trás, vai pesc(quis)ar mais!

Mas que trapalhada! Afinal, esqueci-me de completar a palamenta; e agora, como é que vou dar conta do recado? Está um frio paralisante; emaranham-se as linhas, o bacalhau pica, come a lula e dá à sola! Não é possível! Qual é a Nossa Senhora ou deus do Olimpo que me acode?
Vejo ao longe os meus companheiros a içarem os grandes peixes estrebuchantes, vão acolchoando o fundo dos barcos, e eu aqui, abandonada da sorte, ou do talento... Mas espera! A linha estremece... é desta! Só pode ser um dos grandes, é puxar, é puxar!
Que grande estrondo!
Acordo em sobressalto... o livro “Uma Crónica...” escorregou e caiu ao chão!

20 agosto 2011

Uma Crónica da Pesca do Bacalhau – 26 de Agosto às 21h00



«… Antes de entrar a bordo, dei uma rápida olhadela à proa e vi o casco cheio de amolgadelas, que, soube depois por experiência própria, eram causadas pelos embates contra os growlers, assim chamados os blocos de gelo flutuantes …» in “Uma Crónica da Pesca do Bacalhau” de Joaquim Rebordão Leitão.

Esta será uma Sessão especial. Por um lado, contamos com a presença do Autor. Por outro, contamos com as habilidades culinárias de alguns leitores, para uma ceia especial em torno do famoso espécimen … 

19 agosto 2011

Na senda de Luísa…

 


No dia 13 de Agosto, pelas 14h30, marcámos encontro no Cais do Sodré. Daí desbravámos caminhos antes percorridos (ou por nós imaginados), pelas personagens do “Primo Basílio”.
Lugares como a Rua do Ferragial de Cima, a Patriarcal, Rua do Moinho de Vento, o Hotel Gibraltar, a Pastelaria Baltreschi ou o Passeio Público, tornaram-se tão familiares como se também nós por lá tivéssemos vivido momentos gloriosos.

Do roteiro, cuidadosamente preparado pelas competentes “Organizações Pandeireta” constaram:

Cais do Sodré e Aterro
Rua do Ferragial (terramoto)
Rua Vítor Cordon
Teatro Nacional S. Carlos (Ópera do Tejo)
Grémio Literário e Hotel Gibraltar
Basílica dos Mártires
Casa Havaneza/Pastelaria Baltreschi
Largo do Loreto/Praça Luís de Camões
Rua da Misericórdia/ Rua Larga de S. Roque
Igreja de S. Roque/ da Misericórdia
Jardim S. Pedro de Alcântara/Convento de S. Pedro de Alcântara
Moinho de Vento
Patriarcal Queimada
Jardim do Príncipe Real (com lanche a rigor)
Praça da Alegria
Passeio Público /Avenida da Liberdade
Convento da Encarnação

No final da visita e chegada a noite, ainda vimos surgir por trás do Castelo S. Jorge uma lua lindíssima, que nos iluminou o caminho para o ágape costumeiro. Foi mais um dia sublime, na vida desta Comunidade. A repetir…