16 dezembro 2011

CONTINUAÇÃO DE UM CONTO DE NATAL ( 4 )

A cultura literária de Ebenezer Scrooge era praticamente nula, como decerto já compreendeu a leitora atenta e acostumada a leituras sábias, e até o leitor, espécime naturalmente básico que se dedica aos livros por fraquezas da idade ou carências várias de que nem é bom aqui falar. Assim, se desconhecia a personagem de Hamlet e a do seu imortal criador, como poderia o prestamista saber a que episódio histórico se referia o Sr. Fish com aquela inescrutável apóstrofe latina. Falassem-lhe de juros e rendas, de letras de câmbio e de saques à vista, de papéis do tesouro e obrigações, e outro galo cantaria!
Porém, não se pense que o tu-quoque-Brute-fili-mi! que o antigo escolar do college de Oxford lhe atirara de chofre, assim como quem manda uma pedra bicuda à cabeça duma criança pequena, era de todo despropositado. Vejamos: anda uma personagem a passear de história em história, desfigurando as narrativas, subvertendo o labor do autor empírico que as gerara com um determinado sentido e propósito – ora o que é isto senão matar o pai que dá a vida e o pão à prole? Um Brutus, era aquilo em que Ebenezer Scrooge se havia tornado. O Sr. Fish sabia do que falava, pois também ele já havia sentido, por mais de uma vez, o mesmo desejo, denso e penetrante como o smog londrino, de dar um pontapé na altivez de Sir Joseph Bowley e partir à descoberta de outra história em que pudesse ser mais feliz como personagem. Mas adiante, deixemos estes considerandos, que não há meio de se chegar ao que interessa.
Em poucos minutos, enquanto Sir Joseph Bowley perorava perante o atónito Toby Veck sobre a necessidade de reprimir a criminalidade em Inglaterra e as vantagens de se entrar no ano novo com as contas pessoais devidamente saldadas, Ebenezer Scrooge era esclarecido sobre a história do príncipe Hamlet da Dinamarca. O Sr. Fish levou tão a peito as suas explicações que acabou também por falar dos Capuletos e dos Montecchios, ilustres famílias de Verona, e do mouro Otelo e de Desdémona, gente bem conhecida em Veneza, de tal forma que o bom do prestamista, aturdido com tanta sabedoria, pretextou assuntos de serviço no seu escritório e passou-se rapidamente para a história que por direito autoral lhe pertencia.
Chegou ao escritório no preciso momento em que o empregado Bob Cratchit acabava de copiar, com os vagares que lhe são conhecidos, a acta dum acordo de credores da firma Coal & Shipments Ltd., de Tower Street, nº 5. Mas logo estacou, assustado, perante o quadro que se lhe deparava: sentado à sua secretária, levemente inclinado sobre ela como quem trabalha, a barbicha hirsuta e o cabelo dividido por um risco ao lado que o projectava para o alto como duas excrescências peludas, aproveitando o tempo para retocar alguns capítulos de “Oliver Twist”, Charles Dickens, him himself, aguardava calmamente pela sua chegada.

3 comentários:

Custódia C. disse...

Acabei agora de ler a continuação da saga Ebenezeriana.
E pronto, eu sabia!
Eu sabia que o Dickens não se iria ficar, andasse ele lá por onde andasse. Autor que é autor defende a sua dama, neste caso mais concreto, os seus espíritos!
Venha de lá esse raspanete, que eu já estou aqui em pulgas !!!

Manuel Nunes disse...

Minha Amiga,
Raspanete é capaz de haver, mas vamos lá a ver quem é que sairá por cima.
Amanhã, sábado, a redacção está encerrada.
Good night.

Joca disse...

Bem, o Sr Charles Dickens pode ir pedir dinheiro para editar e publicar o novo livro :) Seria o seu melhor presente de Natal. Aguardo novo episódio.