18 dezembro 2011

CONTINUAÇÃO DE UM CONTO DE NATAL ( 5 )

Tranquilizem-se as benévolas leitoras que esta continuação-de-um-conto-de-Natal não está longe de chegar ao fim. Não é que não houvesse matéria para prolongar a história por mais alguns meses – sei lá, até por alturas de Quinta-feira de Endoenças ou do feriado do Corpus Christi, que aliás já não será feriado, por intervenção oportuna e saneadora das potências estrangeiras que agora governam o país. Acontece porém que o escrevente tem de ir tratar da sua vidinha, ausentando-se por tempo incerto para parte se calhar igualmente incerta, o que o impede de ficar aqui agarrado à escrita, debitando diariamente os episódios como se fosse esse o seu ofício e não tivesse mais nada para fazer. Tenha-se em conta que o ecrã do computador não é o mundo e que, como diz o outro, há mais vida para além do défice, ou, aliás, desculpe-se o lapsus linguae, mais vida para além das teclas.
Sendo assim, não entremos em detalhes sobre a conversa, ou desconversa, entre Charles Dickens e Ebenezer Scrooge, e atentemos na seguinte letter inédita encontrada no espólio do grande escritor inglês:

December, 27 th, 1843

My Dear Friend,
I write some lines to tell you a project I have in view. Projecto de concretização urgente, diga-se, que terei de concluir até ao final do ano, dado o risco que corro de assistir à implosão trágica e irreversível de alguns dos meus apreciados contos de Natal.
Acontece, My Dear Friend, que uma bizarra personagem por mim criada, Mr. Scrooge – deves estar a ver quem é, um agiota da city que enriqueceu à custa da ruína alheia –, se revoltou contra a minha pessoa por não concordar com o curso da história que inventei para ele. Esta atitude foi desencadeada pela intervenção do espectro do castelo de Elsenor, uma referência em má hora introduzida no meu conto, que tendo adquirido foros de personagem veio desassossegar o citado Mr. Scrooge.
É claro que tive de lhe dar um raspanete – esta expressão tão informal não é minha, por ela peço desculpas, mas de uma simpática leitora que a adoptou e eu, por graça, agora a uso. Só que a dita personagem esperneou que nem um frango de capoeira na degola, que não havia direito, que não estava para aturar os espíritos que o assediavam, e que tratasse eu de dar uma nova orientação à história porque se não o fizesse ou se queixava ao sindicato ou se passava para outra história com armas e bagagens, que isto de concertação social entre autor e personagens era uma prática adquirida, não fizesse eu como um certo governo de um país aliado, quase dois séculos mais tarde, que se dispôs a aumentar o horário de trabalho em meia hora diária e nem se dignou ouvir os parceiros sociais sobre o assunto.
Estás a ver a questão: eu que sempre fui pelas ideias socialistas de Saint-Simon e de Proudhon, que até cheguei a ler um tal Marx que na altura ninguém sabia quem era, que exultei com a prosa de um certo João Baptista de Almeida Garrett, que andou aqui pela ilha, fugido aos reaccionários do seu país – pobre país, aliás, que nem se regenerou com o sangue que lhe injectámos da nossa estirpe dos Lencasters – e que escreverá esta coisa fabulosa - E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico? -, pois eu, que sou um homem de ideias avançadas, que sempre estive do lado dos humilhados e ofendidos como um Dostoieveski de língua inglesa, sou obrigado a dar abrigo às reivindicações dum agiota e a pactuar com a usura para que a minha literatura sobreviva e os meus leitores me possam ler.
O projecto que resolvi empreender foi, agora o digo, o de rescrever a história de Mr. Scrooge. Verás como, My Dear Friend.

Best regards.
Ever faithfully
Charles Dickens

2 comentários:

Custódia C. disse...

Oh my Lord! Should I write this comment in English?
Que o meu amigo é bem relacionado, já se tinha percebido. Mas receber uma carta do homem? Himself? E com uma tal clarividência em termos de futuro? Anseio pela rescrição da Mr. Scrooge’s tale!
Ah e é claro sendo raspanete uma palavra demasiado simplória para Charles, talvez devesse ter usado admoestação?

Manuel Nunes disse...

Sim, Minha Cara Leitora, sou muito bem relacionado, sobretudo com ilustres famílias de S. Domingos de Rana, Oeiras, Carcavelos e Parede.
Obrigado pelo interesse com que seguiu a história.
Escrevente de diversas histórias, nem todas edificantes, veja a hora a que me vou deitar com tanto trabalho.
Mas agora vou parar: black-out quase absoluto nos próximos dias.
Um bom Natal para si e todos os seus.