13 dezembro 2011

CONTINUAÇÃO DE UM CONTO DE NATAL ( 1 )

Ebenezer Scrooge, prestamista da praça de Londres no tempo da rainha Vitória, sempre acreditara nas potencialidades dos mercados financeiros, na mão invisível que dirige a economia, nas vantagens de poupar dinheiro e nas virtudes do juro que Santo Agostinho tão injustamente vilipendiara. Porém, assediado em vésperas de Natal por três espíritos perversos, modificou inopinadamente a sua forma de pensar, acabando por oferecer um peru de elevado preço ao seu empregado Bob Cratchit – um calaceiro que se deixava dormir sobre a carteira de amanuense enquanto copiava com infinito vagar, ao ritmo fatigado da sua pena de pato, as desassossegantes frases do mister de agiota : “Aos tantos dias do mês tal, do ano tal, pagará por esta minha única via de letra, a mim ou à minha ordem, a quantia de tal e tal e tal.”
Ainda que embarcado nesta onda de abro-as-mãos-e-dou-o-que-tenho-e-tu-não-tens, Ebenezer Scrooge, que não era parvo, ia meditando nas consequências para o negócio da sua inesperada fraqueza natalícia. Espíritos persuasores e desavergonhados, aqueles três que o haviam visitado – pensava. Mal sabia ele que com o oferenda do peru ao seu empregado, instituíra entre o patronato o hábito das broas, mais tarde conhecido pelo nome prosaico de subsídio de Natal, remunerações tão estapafúrdias e perigosas que os governos dos séculos seguintes se veriam obrigados a legislar no sentido de as moderar ou até acabar com elas. Mas adiante.
Ebenezer Scrooge, passados os efeitos da emoliente catequese dos três espíritos, já meditava naquilo que agora se sabe e em mais umas quantas coisas – como, por exemplo, a melhor forma de fazer a penhora duma casa cujo proprietário tinha as rendas do empréstimo em atraso ou a conveniência de preparar novas aplicações em papéis da dívida pública –, quando de um canto da sua sala, por detrás de uma cómoda de nogueira velha em que guardava as modestas roupagens, lhe surge, enorme e tenebroso, o vulto de um quarto espírito.
– Quem és tu? – perguntou com uma grande secura de boca, sentindo comichões nos artelhos e um forte congestionamento abdominal.
O espírito fez-se bronco, fingindo que não ouvia, e Ebenezer Scrooge pôde ver-lhe o cenho carregado e feio, a fímbria da túnica dez centímetros acima do soalho, sem pés que se notassem, e as mãos lívidas como nuvens que lhe saíam das mangas largas e ilusórias.

4 comentários:

Maria Amélia disse...

Bem, calculo que este Espírito, uma vez esgotados os Natais no tempo, seja o Espírito da impossível conciliação do Capital e do Trabalho... A ver vamos?

Joca disse...

Pois eu penso que pode ser o Espírito do Natal Realista, que pede um equilíbrio entre os diversos excessos. Nem 8 nem 80...nem demasiada exploração nem demasiada cedência. Aguardo próximo episódio. :)

Custódia C. disse...

Eu tenho cá para mim que neste momento o Dickens, ande lá por onde andar, deve começar a preocupar-se com este quarto espírito que parece querer roubar protagonismo aos anteriores!

Manuel Nunes disse...

Maria Amélia e Maria José: Frio, muito frio.
Custódia: Quanto ao protagonismo, quem sabe? Mas não acredito que o Dickens se preocupe - ele sabe bem o valor que tem (até rima).
---- Amanhã verão o que acontece.