30 agosto 2012

Viagem a Santarém

“…Nunca dormi tão regalado sono em minha vida. Acordei no outro dia ao repicar incessante e apressurado dos sinos da alcáçova. Saltei da cama, fui à janela, e dei com o mais belo, o mais grandioso e, ao mesmo tempo, mais ameno quadro em que ainda pus os olhos.
No fundo de um largo vale aprazível e sereno está o sossegado leito do Tejo, cuja areia ruiva e resplandecente apenas se  cobre de água junto às margens, donde se debruçam, verdes e frescos ainda, os salgueiros que as ornam e defendem.  De além do rio, com os pés no pingue nateiro daquelas terras aluviais, os ricos olivedos de Alpiarça e Almeirim; depois, a vila de D. Manuel e a sua charneca e as suas vinhas. De aquém a imensa planície dita do Rossio, semeada de casas, de aldeias, de hortas, de grupos de árvores silvestres, de pomares. Mais para a raiz do monte em cujo cimo estou, o pitoresco bairro da Ribeira, com as suas casas e as suas igrejas, tão graciosas vistas daqui, a sua cruz de Santa Iria e as memórias romanescas do seu alfageme…”
In “Viagens na Minha Terra” de Almeida Garett, Capítulo 28º
Foto minha de ontem, tirada da janela acima descrita, na Fundação Passos Canavarro
 
Foto minha do azulejo, que penso representar a Ponte da Asseca, no mercado de Santarém
Foto minha da Fonte da Joaninha, no Vale de Santarém
Ontem, um pequeno grupo desta Comunidade seguiu os passos de Garrett e foi de Lisboa a Santarém, não de barco e nem de azêmola, mas com o mesmo interesse e curiosidade.

14 agosto 2012

MANUEL TEIXEIRA-GOMES (Vila Nova de Portimão, 1860 - Bougie, Argélia, 1941)

Na embaixada de Londres

Era uma forte rapariga de seus quinze anos, com o desenvolvimento de mulher feita, embora vestindo saia curta; a tez levemente morena ou desse tom mate, que no Norte se contrapõe ao róseo nacarado das loiras e à luz meridional se capitularia, talvez, de alvura láctea; olhos imensos e pretos, da cor do cabelo que lhe caía, solto, sobre as costas, fartíssimo e ondeado como um velo de azeviche.

("Deus ex machina", Novelas Eróticas)


10 agosto 2012

UMA COMUNIDADE MUITO CANÓNICA


A imagem não é famosa, de fotocópia hoje tirada na BN. José Régio e Alberto de Serpa em Amarante, em pleno Verão de 1950. E logo sob o regaço daquela Pietá bem nossa conhecida. Ruben A. em O Mundo à Minha Procura chama-lhe a Pietá mais bonita da estatuária portuguesa. Lembram-se?

09 agosto 2012

Uma Comunidade muito canónica...*

 Agosto 2012, a poesia na Praça da Figueira

*Agarrando na constatação do nosso mentor aqui em baixo referida, cá está a prova do crime

"Mil anos há que busco a minha estrela
E os fados dizem que ma têm guardada;
Levantei-me de noite e madrugada,
Por mais que madruguei não pude vê-la ..."

Parte de um Soneto de Francisco Rodrigues Lobo

08 agosto 2012

SOBRE O CÂNONE LITERÁRIO

---------- Parte de um artigo de VASCO GRAÇA MOURA publicado hoje em www.dn.pt

Poucas ideias devem ter sido tão discutidas na teoria literária moderna como a de cânone. Posto em questão devido a ressentimentos de vária ordem, como sustenta Harold Bloom, ou por razões teóricas mais ou menos ligadas à Linguística ou às ideologias, o cânone aspira a englobar uma lista de autores e de obras consideradas modelos de perfeição, seja à escala nacional, seja à escala ocidental, seja à escala universal. A sua estabilização, sempre a entender em termos flexíveis e abertos a sucessivas incorporações, supõe a passagem do tempo, a filtragem pela consciência colectiva e a inserção em coordenadas civilizacionais, a existência e funcionamento de critérios de valor identitários e estéticos, uma tradição analítica de comentários e uma história cultural, e provavelmente uma tensão dinâmica com sucessivos contra-cânones.
Sem pretender entrar em discussões teóricas e sem negar que haja uma certa dose de flutuação necessária no próprio estabelecimento do cânone e dos seus contornos práticos, considerando o caso português (ou, se se preferir, o dos espaços em que se fala o português) as coisas podem resumidamente ser postas assim: deveria haver um conjunto de obras literárias escritas na nossa língua que todos teriam de conhecer.
No plano do ensino, isto parece de uma evidência elementar, mas tem andado mais ou menos esquecido. Ora, reduzida às suas linhas mais simples, esta é afinal a questão do cânone literário e da sua relevância para o currículo escolar, embora esse plano, por definição, acabe por ser transcendido, pois o cânone não é propriamente uma simples ferramenta para uso do ensino, mas antes um quadro de referências indispensáveis e um complexo de elementos literários respeitante ao sistema de valores e aos interesses culturais de uma dada sociedade: incorpora uma série de modelos cuja evidência paradigmática se recorta ao longo dos sucessivos tempos históricos e se impõe à mentalidade e à sensibilidade colectivas.
Na escola, a abordagem do cânone deve ser flexível e variada. Em Portugal, antigamente, havia para tal efeito excelentes instrumentos que iam dos cadernos literários da Seara Nova aos textos da editorial Comunicação e vários outros. Havia também selectas, crestomatias e antologias que apresentavam criteriosamente passagens mais ou menos extensas de obras que faziam parte do cânone. E havia, para quem estudava, a obrigação de saber dessas obras e mesmo de conhecer algumas delas na íntegra.
Dos cancioneiros medievais a Fernão Lopes, de Bernardim e Gil Vicente a Sá de Miranda e Camões, de Rodrigues Lobo e Francisco Manuel de Melo a Bernardes e Vieira, de Bocage, Garrett e Herculano a Camilo, Eça, Cesário, Antero e António Nobre, isto para dar só alguns exemplos flagrantes do século XIII ao século XIX, os alunos de Português tinham de contactar com toda uma série de autores e isso só lhes fazia bem. Visitavam lugares escolhidos da grande literatura escrita na sua língua e, a partir desses paradigmas, tinham de proceder a vários tipos de análise e de interpretação, enriqueciam o seu conhecimento do léxico e da gramática, aprendiam figuras de estilo, adquiriam uma certa compreensão histórica e contextualizada da obra de cada autor, aperfeiçoavam grandemente o conhecimento do português como língua materna e tornavam-se capazes de utilizá-lo melhor. (...)

---------- Gil Vicente, Rodrigues Lobo - leituras e representações recentes... Uma Comunidade muito canónica.

01 agosto 2012

Quem pediu FRANCISCO RODRIGUES LOBO?

VILANCETE

Disse Inês que me queria
No tempo que me enganava;
E eu queria, ela zombava.

Deu-me mostras e sinais
Que me amava de verdade,
Cativou minha vontade
Para assim querer-lhe mais;
Cuidei que eram naturais
Os extremos que mostrava,
E eu queria, ela zombava.

Era de mim tão contente
Que assim mesmo tinha inveja,
Que o que muito se deseja
Logo se crê facilmente;
Logo ela era tão diferente
Que em tudo o que me tratava
Eu queria, ela zombava.

Foi-me assim, zomba zombando,
Vencendo por graça e riso;
Sem nunca me amar de siso,
O siso me foi tirando;
Fiquei doido, como quando
Pelo amor, que me mostrava,
Eu queria, ela zombava.

Diziam-me os guardadores:
– Olha ora por ti, Joane,
Deixa Inês e não te engane,
Que ela tem outros amores. –
Cuidavam que eram melhores
Os que comigo tratava:
E eu queria, ela zombava.

Primavera (1601)