20 março 2013

As Montanhas de Torga I


Nestes contos da montanha, a paisagem física é, ela mesma, um personagem que modela os outros, de carne e osso, que ali se movem. Com efeito, estes camponeses das montanhas dos concelhos transmontanos de Sabrosa, Vila Real, Peso de Régua e outros contíguos, confinando com a zona do Douro vinhateiro, comungam com as fragas, penedos, trilhos de montanha e zonas de pastoreio, pequenos vales de cultivo, rios, ribeiras, pequenas aldeias e vilas, santuários, caminhos perdidos. Assim, em cada conto temos localizações geográficas precisas, cuja descrição é marcada pelo seu carácter bravio, e a despeito deste, pelo elemento humano, neste caso simbolizado pelos socos do moleiro:
«Galafura vista da terra chá, parece o talefe do mundo. Um talefe encardido pelo tempo, mas de sólido granito. Com o céu a servir-lhe de telhado e debruçada sobre o Varosa, que corre ao fundo, no abismo, quem quiser tomar-lhe o bafo tem de subir por um carreiro torto, a pique, cavado na fraga, polido anos a fio pelos socos do Preguiças, o moleiro, e pelas ferraduras do macho que leva pela arreata. Duas horas de penitência. Lá, é uma rua comprida, de casas com craveiros à janela, duas quelhas menos alegres, o largo, o cruzeiro, a igreja e uma fonte a jorrar água muito fria. Montanha.» (in. Maria Lionça)
Neste vasto e pequeno mundo, as diferenças não deixam de se fazer sentir: há uma relação desconfiada entre o vale e a montanha, pois que «O Rebel era a fraga cimeira da Mantelinha, lavada todos os dias pelo bafo do céu; e Provezende fica nos fundegos da Ribeira, aonde até o ar chega por favor. De forma que não podia de nenhum modo ter olhos para tamanha claridade.» (in, Um Filho), ou entre a aldeia e o centro administrativo, admiravelmente apresentada no conto O Pé Tolo:
«A vila não perdoa à aldeia o ar lavado que lhe dignifica a pobreza, a feira dos nove, sem comparação nas redondezas, a bela situação que desfruta no centro do município, e, sobretudo, a rebeldia que se estampa no rosto másculo dos seus filhos. Homens de timbre e landreiro, rijos de corpo e alma, ninguém se meta com eles se não está disposto a arriscar a vida. Ora como os de Soutelo são doutra natureza - pernósticos, troca-tintas e amigos de coser o semelhante agachados atrás do balcão das repartições -, nunca se entenderam. Daí o calvário dum convívio difícil e atormentado(...).».
Diferenças entre a paisagem e a própria natureza dos habitantes. E contudo esta montanha proporciona aos seus filhos uma vida pobre e áspera, que os empurra à emigração como solução de vida. Não só nos difíceis trilhos que devem calcorrear:
«Infelizmente, a Senhora da Saúde não ficava logo ali. Quase no termo de Valongueiras, distava de Abaças uma boa meia hora. Ainda por cima, caminhos maus. Ou lajes com relheiras que lembravam rugas em coiro de atanado, ou então saibro ensopado e atoladiço. Trilhos excomungados!» (in O Roubo)
 Também miséria em que tentam sobreviver e que se denota nas alusões à alimentação e habitação:
«A ceia tinha sido caldo de couves e castanhas cozidas. Mais nada. A noite estava de invernia. Sobre o telhado caíam bátegas rijas de chuva. E como a casa era de pedra solta e telha vã, cheia de frestas, o vento, que parecia o diabo, de vez em quando entrava por um buraco a assobiar, passava cheio de humidade pela chama da candeia, que se torcia toda, e sumia-se por debaixo da porta como um fantasma.» (In, O Cavaquinho).
É neste cenário agreste, que por vezes nem parece morada de gente («Não há em toda a montanha terra tão desgraçada e tão negra como Saudel. Aquilo nem são casas, nem lá mora gente. São tocas com bichos dentro.» In, A Ressurreição) , que vivem, amam, sofrem, gozam e morrem estes personagens.

4 comentários:

Paula M. disse...

Com base nos meus «trabalhos de casa», aqui vai uma reflexão sobre os contos, quiçá secante, mas foi o que saiu...

Manuel Nunes disse...

Muito bem, Paula, notas de leitura de um livro efectivamente lido. Um "trabalho de casa" honesto, especialmente se tivermos em conta que há quem escreva sobre livros que nunca leu.

Custódia C. disse...

Obrigado Paula.
Secante aqui, só se ver o vento de Torga ali na referência ao conto "O Cavaquinho"
A leitura destes teus posts foi hoje o meu lenitivo na hora de almoço antes de voltar ao trabalho árduo :)
Que bom!

Paula M. disse...

Obrigada amigos,

Custódia foi pena n/ teres ido. Sentimos a tua falta.