10 novembro 2013

QUIXOTE TAMBÉM EU FUI

Ilustração de ANDRÉ LETRIA

O meu nome é Ginez de Passamonte e nasci em Aragão num lugar desconhecido não muito afastado de Calatayud. A lembrança mais antiga que guardo é de meu pai, com um avental de couro, malhando a incandescência do ferro na oficina que havia na loja da nossa casa. Agora que estou velho e sigo a custo o curso destes primeiros anos do século, o décimo sétimo da era de Nosso Senhor, acordo muitas vezes durante a noite com os olhos cheios dessa imagem ao mesmo tempo querida e, pela distância, assustadora. Meu pai que me educou no respeito e temor de Deus, minha mãe em cujo seio desfolhei o livro iniciático da vida, estão para sempre guardados no meu coração. Fui amado em criança, cresci saudável, estudei humanidades, tomei ordens religiosas que com peso rompi, estive na batalha de Lepanto tendo ficado cativo dos turcos como remador de galés.
        É mister dizer ao leitor que sempre fui seguidor da verdade, vendo o embuste e os  processos ardilosos como chagas maiores da alma e da perfeição humana.  É mister esclarecer, indo direito à razão deste humilde escrito, nunca ter andado de grilhões e algemas pelos caminhos da Mancha, sob o jugo da justiça de D. Filipe II, rei de Espanha e de Portugal,  consorte de Inglaterra, herdeiro de Carlos V, o poderoso imperador do Sacro Império Romano Germânico e rei de todas as Espanhas, senhor, o filho, de domínios onde o sol jamais se punha, desde a americana Filipeia às asiáticas Filipinas onde Magalhães pereceu. Nunca cometi crime contra Deus ou os homens, nunca fui perseguido pela Santa Irmandade ou pela justiça real. A notícia de crimes que não pratiquei e a humilhante prisão que me atribuem foram inventadas pelo cronista arábico Cid Hamete Benengeli e logo propagadas por um preclaro autor de contos, rimances e entremezes, meu companheiro de armas e tão sofredor de cativeiros como eu fui. Já lhes perdoei esses tortos e agravos, Deus Nosso Senhor lhes perdoe também se tal estiver compreendido nos seus insondáveis desígnios.
Saiba-se, portanto, que não fui roubador de asnos nem de alforges, não apontei escopeta ou arma branca aos meirinhos do rei, tampouco alguma vez me dei ares de cigano ou me chamei Ginezilho de Parapilha como vejo escrito nesse grosso volume de tamanha fortuna literária. Ao tempo em que me davam como fugido à justiça real, acolhia-me eu diariamente a Nossa Senhora do Pilar, em Saragoça, buscando remédio para as minha dores em companhia de um irmão da Confraria do Rosário a quem muito me afeiçoei.  
E que dores! Quixote e enamorado também eu fui, amador de uma donzela que só desesperança me deu. A verdade faltante nessa fábula da serra Morena, escrita pelo plumitivo de Alcalá de Henares, é ter eu sofrido, não nas suas brenhas, como Cardénio, mas no imo da alma, a coita de uma paixão sem retorno que ainda não se apartou de mim. Amei essa Doroteia que de mim nunca fala e só de Fernando se queixa, o sedutor que a abandonou.  As mulheres, especialmente quando belas, são alvos expostos e sempre tangíveis de homens inescrupulosos. Acreditei no amor e idealizei as suas excelências, perdi Doroteia como Cardénio perdeu Lucinda, porque na consumação dos afectos há cálculos e congeminações que não entram nos corações dos puros. O que não posso perdoar é que os contadores de histórias se esqueçam de as contar no seu natural e inventem e envileçam os factos por adorno estéril ou simples má fé.
O Quixote da lança frouxa e do elmo de barbeiro poderá ter sido muito verdadeiro no seu amor por Dulcineia, não o nego. Mas não fez mais que reproduzir um código, tomar para si um modelo de amar prescrito, ao longo de séculos, em centenas de livros. Eu segui o modelo do meu coração, o único válido e autêntico, aquele que levou Ulisses pelo mar, de Tróia a Ítaca, fugindo das Sereias e de Circe, navegando entre Cila e Caríbdis para se juntar a Penélope do laborioso manto.
Tudo espero contar na minha autobiografia, aquela de que se fala, em tom jocoso, no cartapácio citado. Se é ou não ao jeito da de Lazarilho de Tormes, os leitores, se os houver, a seu tempo o dirão. Nela tratarei de repor a verdade, o espírito dos factos. Que não me falte o ânimo para a poder concluir, sem embargo de, à fé de quem sou, aqui declarar as ganas que às vezes sinto de dela desistir e pegar nesta história do Quixote para lhe dar o andamento e a continuação merecidos.
Chamar-lhe-ão história apócrifa, eu sei, como é de bom tom e usança entre  gente que se julga detentora da ciência universal das coisas, mas isso, bem visto e pensado, é o que menos me importa.  

2 comentários:

Manuel Nunes disse...

Fonte desta ficção, veja-se o seguinte artigo do Centro Virtual Cervantes:
http://cvc.cervantes.es/literatura/quijote_antologia/riquer.htm

Maria Amélia disse...

Bem pensado e melhor passado a escrita. Só me ocorre agora o que faria aquele famoso revisor, que não se limitava à ortografia...