01 fevereiro 2014

A Paixão dos Ossos - Urbano Tavares Rodrigues e Ferreira de Castro, memórias, a natureza, a escrita e a vida



Texto -- livre na forma, rigoroso no conteúdo -- a partir de uma conversa com Urbano Tavares Rodrigues sobre Ferreira de Castro e a relação entre ambos, em Lisboa, a 6 de Maio de 2013
 
O Ferreira de Castro era um homem com um grande amor à paisagem. Com esse amor ensinou-me a ver Sintra, a conhecer a região. Encontrávamo-nos muitas vezes num cafezinho ali no largo do palácio da vila, não me lembro agora do nome. Mais no Verão e na Primavera, que ele tinha medo do Inverno, agasalhava-se, protegia-se muito.
            Também nos juntávamos em Lisboa, mas em Sintra percorríamos os caminhos e fazíamos o roteiro das fontes. As fontes, do que me recordo, eram das coisas que mais o apaixonavam na serra. E visitávamo-las todas. Também as árvores? Pode ser, mas das árvores não sei.
            Ele teve outra enorme paixão, a Diana de Lis. Foi correspondida? Não me lembro.
            O Ferreira de Castro… era bom como o pão. Eu gostava muito dele, admirava-o imenso, quando morreu fartei-me de chorar. Formámos-lhe uma guarda-de-honra de escritores no funeral: eu, o Mário Ventura Henriques, a Natália Correia, o João de Melo e outros. Dos que privaram com ele estão vivos ainda a Agustina e o João de Melo, que foi meu assistente em Letras, como eu fui de Vitorino Nemésio.
            O Ferreira de Castro e os amigos reuniam-se num café ali no Chiado, creio que se chamava mesmo “Café Chiado”. Os amigos adoravam-no. Eram mais velhos que nós. Às vezes juntava-me eu, o Armindo Rodrigues, poeta, e o pessoal das Belas Artes, como o Manuel da Fonseca. Uma tarde, o Ferreira de Castro estava sentado cá fora, eu ia a passar, era jovem, muito magro, as raparigas gostavam de mim e umas vieram deitar-me os braços ao pescoço. Ele já homem maduro, sério, muito discreto, e diz para os amigos: “Não percebo a sorte deste tipo com as mulheres! Eu compreendo a paixão da carne, não compreendo é a paixão dos ossos”. Tinha este humor, reservado apenas a um círculo muito próximo.
            Naquela época eu parava mais noutra tertúlia, a do Abelaira. Uma vez estávamos ali sentados uns sete ou oito, o José Gomes Ferreira entre eles, tínhamos acabado de escrever um papel contra o governo e recolhíamos assinaturas. Vemos o Herberto Helder descer o Chiado, pedimos-lhe a dele; mas, sendo funcionário da Emissora, se assinasse perdia logo o lugar, era uma situação dramática. E nós compreendemos isso.
            Houve um tempo em que acumulei o trabalho de redação do Diário de Lisboa e d’O Século, onde o Ferreira de Castro também foi redator. Às vezes, à noite, n’O Século havia pouco que fazer. Nessas horas vazias de piquete, eu escrevia contos e romances. Parece-me que ele chegou a fazer o mesmo.
            O Cunhal, que também tinha grande respeito e estima pelo Ferreira de Castro, achou belíssima uma intervenção que eu fiz um dia no círculo dos intelectuais do Partido Comunista. Reclamou com a célula, que eu estava ali mal, que não sabiam aproveitar as pessoas, e convidou-me para ser um dos dirigentes do setor intelectual. E pronto, fiquei a ser. As reuniões do partido, nessa época, decorriam à noite e eram chatas; só animavam com o Manuel da Fonseca, contava anedotas, toda a gente se ria. Agora querem que eu continue, eu continuo.
            Era a personificação da delicadeza, o Ferreira de Castro, fosse entre amigos ou com qualquer admirador na rua. Uma vez fui pedir-lhe financiamento para um 1º de Maio, já não sei de que ano, e ele a desculpar-se: “Eh pá, sabes que eu sou completamente antifascista. Mas não sou comunista…”. Era um grande coração. E eu vim de lá com o dinheiro.
            Alguns neorrealistas acusaram-no de escrever mal. Muito injustamente. A Lã e a Neve, por exemplo, é um livro belíssimo, aquele que mais se aproxima no neorrealismo. Pessoalmente, o meu preferido é A Curva da Estrada, decorrido em Espanha, com um protagonista político assaltado de dúvidas.
            Com o neorrealismo, o socialismo quis evacuar o escritor da obra . Mas o escritor está lá e faz falta.
            A literatura do Ferreira de Castro foi considerada “impura” num período, até hoje, em que se combate toda a obra de empenhamento social e que deixou cair um pouco no esquecimento os neorrealistas. Continua esta moda de outros valores, da literatura de consumo fácil,  que não presta, que é lixo. Ainda há bons escritores, isso sim, mas empenhados politicamente, poucos.
            Eu combato o que se está a passar atualmente. Tanto quanto eu posso. Aqui em casa, sem poder sair à rua, escrevo e o que digo é absolutamente contra este governo, este período de ditadura do capitalismo ultraliberal, neofascista e sem vergonha, e os negócios sujos por trás dele. Já combatia quando tomei partido pelo Delgado, e em consequência me despediram e me silenciaram. Uma Pedrada no Charco escapou à apreensão graças ao Prémio José Malheiros, da Academia das Ciências, 1958, prémio que o Ferreira de Castro recebera duas décadas antes.
           A ele pouparam-no, pelo prestígio internacional. Enquanto escritor, eu não sentia a autocensura que tanto o atormentava. Nós escrevíamos tudo codificado, usávamos de muita imaginação para contornar a censura.
           E eu tinha uma enorme coragem física. Da última vez em que estive preso foi terrível. Cinco dias e cinco noites sem dormir, e quando finalmente pude descansar só conseguia dormir uma hora por dia. O médico de Caxias garantiu-me que não era fascista, que admirava a minha obra, tratou-me por doutor e deu-me um valium inútil. Eram dores constantes no corpo todo, enxaquecas, dores nos dedos. Geralmente os carcereiros são maus, mas o meu não era. Disse-me que só tinha visto sofrer assim tanto o Pulido Valente e perguntou-me se podia fazer alguma coisa por mim.  “Pode. Está lá fora um saco com o meu nome. Lá dentro estão uns supositórios analgésicos. Se me trouxer um…”. Não eram autorizados a isso, claro, mas ele foi buscá-lo. Então dormi. Soltaram-me com receio do movimento pela minha libertação, criado em 1969, aqui e lá fora. Em França movimentou o Sartre e outros, em Portugal muitos, entre eles o Ferreira de Castro, que sempre assumiu posição a meu favor.
           Dos poetas, ele conviveu com Ruy Belo e Herberto Helder, que me lembre. O Ruy Belo escreveu um poema, “Muriel”, belíssimo.   O nome da mulher do Ferreira de Castro, Elena Muriel, mas não inspirado nela. Muito bonita. Como era também muito bonita a Maria Judite de Carvalho, minha mulher, mãe da minha filha Isabel. É ela nesta fotografia. Tinha uns olhos verdes e cabelo louro escuro, que aqui parece ainda mais escuro, porque ela o pintava. Morreu estupidamente, com um cancro. E custou-me tanto, tanto, eu tinha um carinho tão grande, um amor tão grande por ela.
           Não me lembro de pormenores  sobre a relação do Ferreira de Castro com a natureza, com os rios, o campo ou os animais. Foi há muitos anos e esse tópico não era importante. O importante eram as questões políticas e sociais. Mas lembro-me das nossas conversas, das memórias vivas que guardava de Belém-do-Pará e da vida de sofrimento que lá passou. Falava também muito do parente que não lhe deu apoio, desse abandono. Lembro-me de ele evocar, com muita ternura, o Amazonas e o seringal para onde emigrou rapazinho. Também isso me suscitou curiosidade dos locais cenário d’A Selva, que é um livro impressionante. E fui lá, percorri-os um a um, fiquei impressionado.
           O Ferreira de Castro tinha uma comunhão quase mística com a natureza, como eu também tenho. Não é exatamente uma comunhão mística: é quase mística.


AnaCristinaCarvalho / Maio e Agosto de 2013
                                                                                                                                                                             
                                                                                                                                                                     
 

                                                        

9 comentários:

Anónimo disse...

Bia diz...

Quando alguém diz, de quem gosta muito: "era bom como o pão", diz tudo de si.

Gostei muito.

Manuel Nunes disse...

De acordo, Bia. Um documento precioso, um texto muito bonito da nossa camarada Ana Cristina. -- Numa altura em que acabámos de ler Urbano Tavares Rodrigues em S. Domingos de Rana e nos preparamos para "A Lã e a Neve" no Clube de Leitura do Museu Ferreira de Castro. Uma ponte entre livros.

Anónimo disse...

Bia acrescenta...

No texto aqui publicado, Urbano fala de uma das vezes em que esteve preso.
Há edições de "Bastardos do Sol" que trazem também um conto, "Os Pregos".
Leiam e vejam como ele conta esse
episódio.

Manuela Correia disse...

Camarada Ana Cristina, gostei muito do texto. Fazes falta.

Custódia C. disse...

Que texto delicioso!

Anónimo disse...

Obrigada, amigos meus e das leituras.
Também gostei de o escrever, e digo-vos que foi um momento alto da minha vida, a tarde que passei com o UTR no escritório de casa dele.

Maria Amélia disse...

Bem aparecida, rapariga! Que é feito?
Momento grande esse, percebe-se logo.
Obrigada por o partilhares connosco.
É em Sintra, com o F.C., que te vemos?

Anónimo disse...

Espero q sim, Amélia. Se conseguir, preparo qualquer coisa para esse dia.
bjnhs e até lá.

Joca disse...

Cristina, que texto bonito, caramba! E podes dizer que foste uma sortuda, na tarde em que conversaste com o UTR. :)