06 março 2014

GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ, 6 de Março de 1927, 87 ANOS


O GRITO DE DIGNA PARDO ANTE A QUEDA MORTAL DE SEU AMO JUVENAL URBINO* 

Foi às quatro horas e sete minutos da tarde de Domingo 
de Pentecostes, desciam sobre as casas as línguas flamejantes
do divino Paracleto. O calor anunciava chuva, o mar rumorejava
dentro de todos os búzios. Insolente, o papagaio fugira
para os ramos altos da mangueira, e uma escada romba 
preparava-se para escrever uma página da história da infelicidade.
Nem sequer teve tempo de encomendar a alma: o corpo
desprendeu-se da escada como um fruto podre
caído ao solo em súbita demolição de músculos e ossos,
e nenhum anjo-da-guarda  saiu dos catecismos para  lhe aparar
a queda. O grito da criada Digna Pardo trespassou de pânico
as cúpulas de ouro da cidade velha, os pássaros calaram-se,
enquanto Deus, indiferente ao destino dos homens,
sorria de tédio e ócio à sombra roxa da sua eternidade.

* Digna Pardo e Juvenal Urbino são personagens de Gabriel García Márquez em O Amor nos Tempos da Cólera.

2 comentários:

Custódia C. disse...

86 anos de muita inspiração e arte.
Gosto muito de Gabriel e "O Amor nos Tempos de Cólera" é um daqueles que li duas vezes, que de vez em quando folheio e lerei a terceira lá para o final do ano :)

Manuel Nunes disse...

Pois eu só li agora, já no declinar da vida, quase tão decrépito como a Fermina Daza e o Florentino Ariza ao consumarem o seu adiado amor. Ando sempre muito atrasado nas minhas leituras. :) :) :)