04 maio 2014

PELA GRAÇA É QUE VAMOS

Diz-se no Memorial do Convento, por estas ou outras parecidas palavras, que cada qual procura, por seu próprio caminho, a graça. Difícil é acertarmos sobre o que seja a graça, a dos teólogos ou a dos homens simples, aqueles cujo pensamento raramente se eleva acima da sombra rasa dos seus corpos.
A graça pode ser uma mulher, ou um homem, pode ser um poema ou uma canção, mas seja o que for é por ela que vamos e é por ela que sempre nos salvamos.
D. João, quinto do nome na tabela real, rei de arrojados propósitos, procurou a graça naquela sinfonia de pedra desenhada por um arquitecto ourives, composta com a  carne e o sangue de vilões e servos,  volutas e capitéis triunfantes sobre a brutidade arrancada aos veios de mármore de Pero Pinheiro, a mãe da pedra, Benedictione, as pedras filhas que saíram das demais pedreiras do ditoso reino. Uma vila, Mafra, que subiu do vale à montanha, cada letra um nome, outra variante possível, talvez inexacta: m de maravilhosa, a de abnegada, f de feliz, r de religiosa, a de albergue das estátuas dos santos, as que de Itália vieram, dezoito, uma dúzia e meia de milagres de mármore transportados desde o porto de Santo António do Tojal até à fábrica do alto da Vela, passando por Pintéus, Cabeço de Monte Achique e Alcainça Pequena, entre eles os de São Domingos e Santo Inácio, inspiradores de torturas humanas, ou, melhor dizendo, desumanas torturas, de corpos o primeiro, de almas o segundo.
          O padre Bartolomeu Lourenço, Gusmão por vaidade, procurou a graça no voo de uma passarola trágica, Ícaro que nem do Sol logrou aproximar-se, nave de sonhos, ferro e vimes entrançados, uma vela preta, bolas de âmbar amarelo e duas esferas de metal carregadas de vontades, nave ferida num declive rombo da serra de Barregudo e Monte Junto, ali ao pé do cenóbio dominicano de onde saiu o frade que quis violar, bem caro lhe saiu o apetite da carne, a filha da feiticeira Sebastiana Maria de Jesus, um quarto de cristã-nova que não passou despercebido ao olho vivo e jugulador do Santo Ofício.
            Domenico Scarlatti e a música do seu cravo, os anjos a ouviriam de bom grado, não fossem eles mesmos os grandes músicos da corte celestial, sentados à mão direita e única de Deus Pai com as suas harpas e liras, tocando como quem reza, que tudo é música, se não é oração tudo, isto mesmo se diz a páginas tantas do Memorial do Convento. Não foi concedida ao napolitano a graça de tocar no céu, a passarola voou sem ele e o seu cravo de Abril, mas a sua música soou na casa que foi construída sobre a ponte de pedra do rio Caia, Arno e ponte Vecchio peninsulares, cerimónia de troca das princesas. Ouviu-a, sem saber que a ouvia, João Elvas, mendigo vagabundo que privou, caminho do Alentejo, com um fidalgo da corte de D. João, explicador de coisas que o explicando não podia entender sem a sua ajuda, ai dos que por soberba, ao contrário deste fidalgo, não se chegam aos pobres de espírito e entendimento, difícil será, para esses, encontrar os seus caminhos da graça.   
E Blimunda, a que sabia ver, e Baltasar, o que sentia as coisas, até a mão que lhe faltava, Vulcano e Vénus  procurando-se na graça do amor e do desejo, que sem um não existe o outro, embora não se saiba qual manda mais, qual está antes e qual está depois, se é o amor ou se é o desejo.
Pelos caminhos da graça, procurando-a, andaram os que viram o Espírito Santo a sobrevoar Mafra em dia de assombro e maravilha. Não sabiam que o Espírito Santo só sobrevoa as cabeças do apostolado, línguas de fogo desembargando as línguas falantes dos sobrevoados, pedreiros, canteiros e lavrantes, oficiais e mestres-de-obra da fábrica real, nenhum tomou o dom das línguas estranhas, português e do pior falavam, assim continuaram a falar.
Procura da graça acrescida a do rei magnânimo, fazer nascer o milagre catedralesco de São Pedro de Roma na Lisboa de vielas e becos, Rossio na Rua da Betesga. É verdade que cada um procura a graça por seus próprios caminhos, mas alguns são ínvios, infelizmente, como este do grande rei, como aquele do povo trabalhador de Mafra.
Que caminho da graça foi o teu, António José da Silva, judeu de comédias de bonifrates? Desceram sobre ti os gaviões de São Domingos, não os de Rana, que estes são pombas sem fel, relaxado em carne ao lado de Baltasar Sete-Sóis, voador de sonhos e quimeras, rastejante de trabalho e dor, uma nuvem fechada no centro do corpo, viu-a Blimunda Sete-Luas e o seu jejum revelador, mulher tão cheia de graça não há nem nunca houve na terra e nos céus.
É pelo sonho que vamos, disse o poeta. Pelo sonho e pela graça, porque o sonho está dentro da graça, como a poesia está dentro do coração dos homens.


S. Domingos de Rana e Comunidade de Leitores, 30-4-2014

3 comentários:

Custódia C. disse...

Não creio que o poeta se tenha enganado. Indo pelo sonho encontrou certamente a graça. Parece-me que se completam muito bem...
Que bela sessão deve ter sido a do Memorial!

Manuel Nunes disse...

O poeta falou-me, estava a modos que contrariado com a prosa do escriba. Combinei com ele dar um arranjinho na coisa, sou mui temeroso dos espíritos do além.
Quanto a se a sessão foi boa ou não, não sei. Pelo menos aqui ninguém se manifesta. Dizem que não têm tempo: trabalho, famílias e outras desgostantes limitações. -- Mas não faltam a cinemas, nem a convívios, isso sei eu que falo com os espíritos: bem informado, portanto. :)

Custódia C. disse...

Já estava a pensar se teria sido alucinação: o post, o comentário ... afinal não passou de um acerto de contas entre o poeta e o escriba. Está tudo na paz dos Deuses :)