02 fevereiro 2015

BREVES REFLEXÕES SOBRE O LIVRO DE JANEIRO



Primeiro era o fogo. «Queimar era um prazer.» Queimar  capas e contra-capas, as lombadas,as folhas, com jactos de fogo, até se estilhaçarem nos 451 graus Fahrenheit ou nos correspondentes 232,75 graus Celsius. Queimar esses poderosos inimigos do sossego humano: livros, livros com conteúdo, literatura! Assim é a sociedade futura na utopia pessimista que nos apresenta Ray Bradbury. Uma sociedade totalitária, em constante guerra,tecnologicamente avançada, mas que esqueceu as humanidades, que mantém os seus cidadãos na ignorância e num bem estar fictício, alimentado pela tirania dos audiovisuais, pelo culto do prazer,  do efémero e superficial , da excitação, da velocidade   (apenas falta o consumismo desmedido).


Tudo para evitar o conhecimento (a filosofia) e a reflexão (causa de melancolia, que importa a todo o custo evitar).  O ensino tornou-se um sistema de normalização enlatado. As pessoas devem ser entretidas; os laços entre elas, apenas os indispensáveis. Quem não se harmoniza com este cenário é suprimido; os bombeiros, são agora, mercê dos avanços técnicos da construção, instrumentos de purga de tudo o que é indesejável, numa espécie de eliminação purificadora pelo fogo, estando à cabeça os sediciosos livros.

«Saber o porquê das coisas», ver a natureza como ela é, usufruir dela com tempo e manter laços humanos, é o que Clarisse McClellan se atreve, desviando do caminho da «normalidade» o bombeiro Montag, que se descobre isolado e infeliz e se atreve a olhar para dentro de si e para o abismo do proibido: os livros que deve queimar e extinguir. Há quem prefira arder com eles... Na agitação em que se descobre  afirma à sua vazia e alheada mulher, Mildred: «Não temos necessidade que nos deixem sossegados. Temos necessidade de sermos seriamente incomodados de vez em quando

Encetando uma via de interrogação interior, nada o resgatará: nem as cinzas de afeição por Mildred, nem o terror inspirado pelo tenebroso e letal cão-polícia mecânico, nem as tentativas de doutrinação do capitão Beatty, que faz a apologia do mundo em que vivem e da razão porque se o deve aceitar e desistir de pensar, citando toda uma plêiade de autores, que contradizem o seu discurso. Mas o que se impõem é que « Os filmes, a rádio, os magazines, os livros foram nivelados, normalizados sob a forma de pasta de bolo.»; o intelectual é o inimigo a abater,« a protecção da paz de espírito» é o imperativo. Trabalho e distracção; evitar ofensas e disputas, agradar a gregos e a troianos e ainda a mais alguns, para que o ritmo social se mantenha e a verdade do estado de guerra constante seja apenas uma espécie de mau sonho distante.
Faber, o velho professor de literatura, junto de quem Montag procura apoio, revela que o livro em si nada significa. A sua importância e perigo residem na sua qualidade, ao retratar  os pormenores e questões da vida; na possibilidade que dá de reflexão,  de assimilação com tempo e a partir daí da acção em consciência. Podem, de resto, revelar-se meros enfeites de estante, objectos de valor e afecto, produtos indesejáveis e subversivos ou mesmo instrumentos de redenção.

Montag, irremediavelmente convertido/subvertido, tenta guardar dentro de si os livros do «Eclesiastes» e do «Génesis», para que a parábola da peneira e da areia, não se concretize. De perseguidor passa a perseguido. Juntar-se-á aos ostracizados da cidade, nas margens do rio e na senda do velho caminho de ferro.  Com eles, ao longe, verá a destruição da cidade pela guerra cirúrgica e inexorável. E recupera a memória dos seus sentimentos perdidos.

Serão eles, os renegados,que agora,  transmitirão o que sobrou de uma civilização aos que restam, para a sua reconstrução até uma nova destruição, mas onde as sementes sempre persistirão. «E nas duas margens do rio nascia uma árvore da vida dando doze vezes frutos e um cada mês; e as folhas dessa árvore serviam para curar nações.»

E segundo o velho intelectual exilado,Granger, o que fica da vida de alguém?Deixar algo que toque os outros. Um livro,uma história contada, um filho amado, um acto de amor e afeição, um jardim acarinhado. Tudo o resto, será uma procura absurda de felicidade.

1 comentário:

Custódia C. disse...

"E para tudo há um tempo próprio"

Talvez Montag precisasse primeiro de perseguir para depois despertar, compreender e passar para o outro lado ...
Muito bom Paula :)