24 dezembro 2010

CARTA AO PAI NATAL

Ex.mo Senhor,
Devo dizer-lhe, em primeiro lugar, que não encontrará nesta carta as expressões afectuosas e de submissa pedinchice que está habituado a receber dos seus inúmeros admiradores espalhados por todo o orbe. De facto, não só não nutro qualquer simpatia pela rotunda e esdrúxula pessoa de V. Exa., como, por razões que adiante compreenderá, não me é permitido aceitá-lo como representante supremo desta época festiva em que nos habituámos a viver e a comemorar o nascimento do Filho de Deus.
Certamente se recordará que na meninice dos homens e mulheres que, neste país, têm hoje cinquenta e mais anos de idade, nunca a pessoa de V. Exa. era chamada para a entrega de prendas ou brinquedos na noite mágica de Natal. Tínhamos para isso uma figura bem mais credível e ajustada à quadra – o Menino Jesus – a quem não escrevíamos cartas, pois tratando-se de um recém-nascido não poderia naturalmente lê-las, mas a quem rezávamos de joelhos no chão, junto às chaminés de nossas casas, pedindo o carrinho de corda, o triciclo, a boneca de cartão ou os chocolates. A personalidade de V. Exa. era praticamente desconhecida das nossas infantis pessoas, só nos chegando notícia sua, eventualmente, através de algum postal de boas-festas remetido do eldorado americano por um qualquer parente ali emigrado.
Nestas últimas décadas, beneficiando da cumplicidade dos poderes constituídos, tem V. Exa. assumido a representação simbólica do Natal. Paulatinamente, como quem não quer a coisa, foi matando o Menino Jesus que sempre habitara os nossos sonhos de criança – um crime tão bárbaro e nefando como a própria morte do Jesus adulto – insinuando-se junto das novas gerações através de agressivas campanhas de publicidade organizadas pelas grandes multinacionais dos electrodomésticos, das consolas, dos jogos de computador e de toda a classe de brinquedos. V. Exa. vendeu a ternura do Natal aos capitalistas da SONY e da NITENDO, aos fabricantes de sonhos de latão e aos oragos anunciadores de promessas de felicidade descartável. Quem o quer ver é a enviar as suas legiões de clones para a porta das superfícies comerciais, incentivando o consumo desregrado, promovendo o endividamento das famílias e assediando as criancinhas com beijos babados de infame consumismo.
Acresce que a figura e os modos apresentados por V. Exa. são do mais grotesco que se pode imaginar. Ri de uma forma estúpida e desconchavada, veste um fato ridículo que mais parece a farpela dum palhaço, não faz a barba, há quem diga que cheira mal dos pés, e, suprema ironia, garantem-nos que desce pelas chaminés para distribuir as prendas e os brinquedos, quando, com a gordura que ostenta, nem pela porta da garagem seria capaz de passar. Depois, contam-nos que viaja num trenó puxado por renas, entre a Lapónia, sua terra de origem, e os lares de cada um de nós, quando é sabido que tal trenó não existe, é pura ficção para dar um toque de romantismo à sua existência árida, pois as únicas viagens que faz, sabemo-lo bem, fá-las de avião entre as grandes praças financeiras, controlando a evolução dos seus negócios e recebendo as chorudas comissões que lhe são atribuídas pelos fabricantes de brinquedos e de electrodomésticos de todo o mundo.
Não tenho dúvidas que, com V. Exa., o Natal, na sua pureza, está irremediavelmente perdido. Porque o Natal não pode ser este falso esplendor de bens de consumo, sabiamente regido pelos interesses do capitalismo industrial e financeiro. O Natal não pode ser este vazio de alma, este deserto de emoções em redor da mesa farta e de uma árvore, dita de Natal, reverberando luminárias espúrias contra a luz verdadeira da estrela de Belém. Não bastava ter V. Exa. arrancado o Menino Jesus do coração dos homens; era preciso também que os reduzisse, como escravos, a um mero instrumento dos seus desígnios de lucro e enriquecimento ilegítimo.
É por tudo isto e pelo mais que se não diz por ser verdade – cito aqui, de cor, o poeta da Pedra Filosofal – que lhe escrevo estas modestas mas inflamadas linhas, como vivo protesto de quem não se conforma com a ditadura materialista que V. Exa. representa.
Sem outro assunto de momento, e na esperança de topar o menos possível com as execrandas réplicas de V. Exa. que por aí pululam neste período natalício, subscreve-se,

Este que sinceramente o abomina,



(Publicado no blogue "Disperso Escrevedor" em 10 de Dezembro de 2006)

5 comentários:

Anónimo disse...

- Mamãe, mamãe, está aqui um senhor a dizer que o Pai Natal não existe!

- Oh... Não chores meu querido, esse senhor chama-se Manuel?

- Sim, mamã, como sabes?

- Porque a mamãe já é muito crescida e conhece esse senhor há muitos anos, ele é um Anjo-escrevedor e sabes meu filho até os Anjos têm...

- E... mamãe... então, mas...porque diz ele que o Pai Natal não existe?

- Meu querido menino, este Anjo Manuel gosta muito de escrever, e sabes, os escritores inventam qualquer coisa... até mesmo que o Pai Natal não existe:)
Beijinhos
Graça

Custódia C. disse...

Agora não sei se faço o comentário ao Manuel se à Graça :)
Queridos Amigos, vocês não param de me surpreender. Boa a hora, em que "caí" na Comunidade de Leitores!
Bem hajam e Feliz Natal...

João António disse...

Esse barrigudo, cuja único atractivo para mim, é a cor que roubou ao nosso Glorioso, já andava a pedir há muito, ser posto a nu.
Quero deixar o meu agradecimento ao samurai Escrevedor, que se constituiu como lídimo defensor dos bons princípios Natalícios

Anónimo disse...

Deus não existe; o socialismo muito menos e agora o Pai Natal também não???
De facto, é uma figurinha reboluda e irritante, com uma relação estranha com as suas companheiras renas (e vejam-se os postais de Natal- as renas são cada vez mais as protagonistas e o Pai Natal um elemento de brincadeira), que vive cada vez mais nos centros comerciais e por vezes encontramos pindericamente dependurado da janela de algum prédio ou vivenda, como um assaltante, que optou por dar nas vistas.
Tirando isto o que fica da nossa velha tradição? Para mim o partilhar uma refeição; dar e receber pequenas recordações, trocar sorrisos e risos com quem gostamos.
Para além do stress consumista pode
existir ainda alguma felicidade natalícia, mas em calhando, e apesar do apelo gastador do senhor de farpela vermelha,n/ há bem material que compense a insatisfação e a infelicidade de más dinâmicas familiares e pode ser uma das épocas mais tristes do ano.
Eu fui afortunada este ano: o meu foi feliz!Paula

Maria Amélia disse...

Subscrevendo (naturalmente), a carta que o Manuel dirige a este pobre Pai Natal e que nos convida a partilhar, recordei aquilo que em cada Natal me ocorre sempre, a ideia que mina cada um dos "meus" Natais... Devo-a a Thomas Mann e à sua Montanha Mágica, e tem também a ver com um mito de eterno retorno de que, por mais iluminadamente civilizados, não nos descartamos. É que, com Pai Natal ou Menino Jesus, embora radicalmente diferentes, as nossas vidas continuam a ser infalivelmente pontuadas ciclicamente, por este "acontecimento", que é o Natal. E tal como para os protagonistas da Montanha, naquele sanatório, a vida parece existir em função de um intervalo entre Natais, o qual, eventualmente, nos vai parecendo cada vez mais curto...
Bem, chega de pessimismo: mais cristão ou mais pagão, com mais ou menos contenção despesista, de algumas e variadas, até inesperadas maneiras, estes dias hão-de servir para nos aproximarmos uns dos outros-- são os meus votos!
Mª Amélia