27 abril 2020

A MONTANHA MÁGICA, novo apontamento

Inácio de Loyola (1491-1556) e Frederico II da Prússia (1712-1786)

Em pleno sexto capítulo de A Montanha Mágica, o leitor é surpreendido com o aparecimento de uma nova personagem: Leo Naphta, jesuíta de origem judia (tal e qual!), filósofo escolástico e grande defensor da essência do espírito contra a carne em trânsito para a putrefacção. Embora fora do sanatório, Leo Naphta encontrava-se em Davos Dorf a tratar-se da tuberculose, deixando em suspenso a sua acção em prol da edificação da Cidade de Deus.
Hans Castorp, o protagonista, ensaia então em pensamento uma comparação entre o militarismo prussiano (a que o seu primo Joachim se entregara, abandonando o sanatório para poder seguir a carreira das armas) e a pragmática dos inacianos. Passagem soberba de pensamento, daquelas que só se encontram nas grandes obras. «Não seria o seminário Stella Matutina [dos Jesuítas, onde Leo Naphta estudara] uma autêntica escola de cadetes em que os pupilos eram distribuídos por "divisões" e exortados a cumprirem honradamente uma disciplina ao mesmo tempo militar e espiritual, constituindo, por isso, uma espécie de combinação de "colarinho engomado" com a "golilha espanhola"? A ideia de honra e de distinção por mérito, tão importantes na profissão de Joachim, não se evidenciavam também de modo notório, como pensava Hans Castorp, na vocação que Naphta tivera que abandonar devido à doença?» E mais adiante: «A doutrina e os preceitos estabelecidos pelo fundador e primeiro general, o espanhol Loyola, levavam a crer que a sua acção era de maior alcance e que prestavam serviços mais meritórios do que aquelas pessoas que agiam apenas em função da razão lógica.» Considerando ainda: «É que combater o inimigo, agere contra, atacar, portanto, significava mais , e era mais honroso, do que defender-se apenas (resistere). Debilitar e desbaratar o inimigo, dizia o regulamento do serviço de campanha, e mais uma vez o seu autor, o espanhol Loyola, estava em perfeita sintonia com o capitan general de Joachim, Frederico da Prússia, e a sua palavra de ordem: " Ao ataque! Ao ataque!", "Destroçar o inimigo!", "Attaquez donc toujours!" Imagina-se o que destas reflexões poderia dizer o humanista e pacifista Ludovico Settembrini, personagem amiga do confronto intelectual, mesmo com os que, como no caso do jesuíta Naphta, lhe eram totalmente opostos em matéria de pensamento.

24 abril 2020

AINDA O CONDE D' ABRANHOS E A NOSSA HISTÓRIA


A páginas tantas de O Conde d' Abranhos: "Hoje, destruído o regimen absoluto, temos a feliz certeza de que a Carta liberal é justa, é sábia, é útil, é sã. Que necessidade há de a examinar, criticar, comparar, pôr em dúvida?...".
A Carta que vigorava na época do Conde e também do Eça, era a 2ª Constituição portuguesa, de 1826, com o nome de Carta Constitucional, conhecida como A Carta. Refletia a reação conservadora contra a Constituição liberal de 1822. Outorgada por D.Pedro I do Brasil, (e IV de Portugal), após a morte de D.João VI, seguia o modelo francês de 1814 e o exemplo de outros países, como Alemanha, Polónia, e o próprio Brasil, cuja Constituição datava de 1824, outorgada pelo mesmo D. Pedro.
Esta Carta tinha introduzido várias medidas anti-democráticas e a Câmara dos Pares, que fazia pendant nas Cortes com a Câmara dos Deputados, era composta por elementos da nobreza e do clero escolhidos pelo rei (por esta altura, D. Luís), "vitalícia e hereditariamente", incluindo o príncipe real e os infantes. O poder moderador pertencia ao rei, que podia nomear os pares, convocar Cortes e dissolver a Câmara dos Deputados, para além de nomear e demitir o governo, vetar as leis, etc. Também lhe pertencia o poder executivo em conjunto com o governo, pertencendo o poder judicial aos juízes e jurados. Um Conselho de Estado, igualmente de nomeação régia, assistia o rei como cabeça do poder moderador.
Com esta disposição, "quase toda a alta nobreza e a totalidade da hierarquia ficavam com lugar permanente no novo Parlamento liberal". A Carta de 1826 agradava às tradicionais classes privilegiadas, para além de incluir, na Câmara dos Deputados os grandes proprietários e burgueses.
É então esta Carta que vai perdurar um total de 72 anos; numa 1ª fase, de 1926 a 1928 e depois, de 1834 até 5 de outubro de 1910, "como texto fundamental do Reino".

MARQUES, A.H.O. 1998. História de Portugal. Vol III. Lisboa: Editorial Presença

Conde d’Abranhos, sessão mensal em modo videoconferência!



Hoje é dia da nossa sessão mensal. Não sendo possível reunir presencialmente, vamos fazê-lo de forma virtual. Todos os membros da Comunidade receberam o convite para participação, por isso contamos com a presença daqueles que tiverem disponibilidade.

Em discussão e análise, a vida de “Alípio Severo Abranhos, Conde d'Abranhos…varão eminente, Orador, Publicista, Estadista, Legislador e Filósofo”, tal como o descreve o seu eloquente secretário Z. Zagalo.

Eça e a sua crítica política feroz, no seu melhor.

22 abril 2020

O CONDE D´ABRANHOS (4)

Lendo O Conde d´Abranhos, podemos identificar o período do Liberalismo em que se insere a carreira política do protagonista, questionando-nos se sob os nomes fictícios de partidos, ministérios e agentes políticos ( Reformadores, Nacionais, ministério Cardoso Torres, o «velho general despeitado» da Revolta de 20 de Junho, etc.) não estarão nomes reais, historicamente conhecidos, de um tempo concreto e preciso. 
O Conde d´Abranhos foi escrito de um fôlego em 1879, durante uma estadia de Eça em Dinan, na Bretanha, embora a publicação só postumamente ocorresse, em 1925. À época da sua escrita, por razões que se adivinham, o editor terá chegado a propor que o livro saísse sem indicação da autoria.
A carreira política de Alípio Abranhos desenrola-se no 3º período do Liberalismo (1851 a 1890), conhecido pelo nome de Regeneração. Trata-se de um período caracterizado por um conjunto de melhorias materiais – rede viária e ferroviária, faróis, portos, telégrafo, fornecimento de água e iluminação – com expansão do sector agrícola mas fraca progressão da indústria. Este programa de desenvolvimento foi denominado Fontismo, devido a Fontes Pereira de Melo, seu inspirador e principal impulsionador.
No plano político destacavam-se os partidos Regenerador, Reformista e Histórico, tendo estes últimos dado origem, em 1876, ao Partido Progressista. As forças partidárias iam alternando no poder, tal como os Reformadores e os Nacionais do romance, sem que entre elas houvesse diferenças significativas, tanto ideológicas  como de prática política. Era o rotativismo.
Desconheço a eventual correspondência histórica do ministério Cardoso Torres, mas tendo a normalidade constitucional da Regeneração sido perturbada por golpes de estado – a revolução da Janeirinha em 1867-1868 e o golpe do Marechal Saldanha em 1870 – o livro de Eça faz eco de tais acontecimentos com o pronunciamento do «velho general despeitado», uma provável representação do marechal Saldanha, chefe militar prestigiado e inveterado golpista.
De notar que o período da Regeneração corresponde no plano cultural ao do segundo Romantismo, execrado e combatido pela escola realista, sendo notórias, neste e noutros escritos de Eça, as sátiras em torno de poemas ultra-românticos de João de Lemos, Soares de Passos e Bulhão Pato.
E assim, temos um romance que ficou na gaveta por mais de quarenta e cinco anos, ultrapassado em data de publicação por obras menos acutilantes do autor, um romance inacabado, sem revisão, o que lhe confere essa característica de peça em bruto, sem rodeios, num registo de quem fala com “o coração na boca” – fundamentalmente pelo discurso laudatório do narrador-biógrafo, convencido de que está a pôr nos píncaros o seu mentor e afinal só lhe descobre as fraquezas, a mediocridade intelectual e as misérias do seu carreirismo político sem honra nem princípios.

[Fontes: www.feq.pt, sítio da Fundação Eça de Queiroz; JOÃO MEDINA, História de Portugal Contemporâneo (político e institucional), Universidade Aberta, 1994.]

16 abril 2020

Luís Sepúlveda (1949-2020) - O fim de um voo...

 
(Foto Bruno Simão)
(Foto dos meus livros)

“Capítulo 4 - O fim de um voo

O gato grande, preto e gordo estava a apanhar sol na varanda, ronronando e meditando acerca de como se estava bem ali, recebendo os cálidos raios de barriga para cima, com as quatro patas muito encolhidas e o rabo estendido.
No preciso momento em que rodava preguiçosamente o corpo para que o sol lhe aquecesse o lombo ouviu o zumbido provocado por um objeto voador que não foi capaz de identificar e que se aproximava a grande velocidade. Atento, deu um salto, pôs-se de pé nas quatro patas e mal conseguiu atirar-se para um lado para se esquivar à gaivota que caiu na varanda.
Era uma ave muito suja. Tinha todo o corpo impregnado de uma substância escura e malcheirosa.
Zorbas aproximou-se e a gaivota tentou pôr-se de pé arrastando as asas.
-Não foi uma aterragem muito elegante - miou.
-Desculpa. Não pude evitar -reconheceu a gaivota.
-Olha lá, tens um aspeto desgraçado. Que é isso que tens no corpo? E que mal que cheiras! -miou Zorbas.
-Fui apanhada por uma maré negra. A peste negra. A maldição dos mares. Vou morrer - grasnou a gaivota num queixume.
-Morrer? Não digas isso. Estás cansada e suja. Só isso. Porque é que não voas até ao jardim zoológico? Não é longe daqui e lá há veterinários que te poderão ajudar -miou Zorbas.
-Não posso. Foi o meu voo final - grasnou a gaivota numa voz quase inaudível, e fechou os olhos.
-Não morras! Descansa um pouco e verás que recuperas. Tens fome? Trago -te um pouco da minha comida, mas não morras - pediu Zorbas, aproximando-se da desfalecida gaivota.
Vencendo a repugnância, o gato lambeu-lhe a cabeça. Aquela substância que a cobria, além do mais, sabia horrivelmente. Ao passar-lhe a língua pelo pescoço notou que a respiração da ave se tornava cada vez mais fraca.
-Olha, amiga, quero ajudar-te, mas não sei como. Procura descansar enquanto eu vou pedir conselho sobre o que se deve fazer com uma gaivota doente - miou Zorbas, preparando-se para trepar ao telhado.
Ia a afastar-se na direção do castanheiro quando ouviu a gaivota a chamá-lo.
-Queres que te deixe um pouco da minha comida? - sugeriu ele algo aliviado.
-Vou pôr um ovo. Com as últimas forças que me restam vou pôr um ovo. Amigo gato, vê-se que és um animal bom e de nobres sentimentos. Por isso, vou pedir -te que me faças três promessas. Fazes? – grasnou, sacudindo desajeitadamente as patas numa tentativa falhada de se pôr de pé.
Zorbas pensou que a pobre gaivota estava a delirar e que com um pássaro em estado tão lastimoso ninguém podia deixar de ser generoso.
-Prometo-te o que quiseres. Mas agora descansa – miou ele compassivo.
-Não tenho tempo para descansar. Promete-me que não comes o ovo - grasnou ela abrindo os olhos.
-Prometo que não te como o ovo - repetiu Zorbas.
-Promete-me que cuidas dele até que nasça a gaivotinha.
-Prometo que cuido do ovo até nascer a gaivotinha.
-Promete-me que a ensinas a voar - grasnou ela fitando o gato nos olhos.
Então Zorbas achou que aquela infeliz gaivota não só estava a delirar, como estava completamente louca.
-Prometo ensiná-la a voar. E agora descansa, que vou em busca de auxílio – miou Zorbas trepando de um salto para o telhado.
Kengah olhou para o céu, agradeceu a todos os bons ventos que a haviam acompanhado e, justamente ao exalar o último suspiro, um pequeno ovo branco com pintinhas azuis rolou junto do seu corpo impregnado de petróleo….”

In “História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar”, de Luís Sepúlveda


15 abril 2020

O CONDE D´ABRANHOS (3)

Nos romances de Eça há recorrências notáveis. Uma delas é o aparecimento de personagens de meninos-prodígios a recitarem poesia. Deveis estar lembrados do Cap. III d´Os Maias, o «tristonho e molengão» Eusebiozinho a mostrar os seus dotes com o poema “A Lua de Londres” do ultra-romântico João de Lemos.
O Conde de Abranhos, a menina Julinha recita o mesmo poema em casa do bestial desembargador Amado, sendo citados quatro versos da primeira estrofe e outros tantos da segunda. Antes, a prodigiosa menina aventurara-se por poesia mais funesta, nada mais, nada menos que “O Noivado do Sepulcro”, de Soares de Passos:
«Vai alta a Lua na mansão da morte,
Já meia-noite com vagar soou…»
É claro que o bom do Eça não refere os títulos dos poemas nem os nomes dos seus autores. Nem tal era preciso, tão conhecidos eram eles dos salões e saraus chiques da época. Os poetas ultra-românticos, os citados e também Bulhão Pato, foram bobos da festa nas narrativas queirosianas. Os portugueses e ainda Lamartine, o criador de Elvira, embora este estivesse uns degraus acima dos românticos serôdios cá do burgo. Cá da «choldra», diria o Eça.

14 abril 2020

O CONDE D´ABRANHOS (2)

Escrevendo em louvor de Alípio Abranhos, Z. Zagalo tem páginas de utilidade e rigorosa actualidade. 
Hoje retomei a leitura naquela parte do livro em que o «varão eminente» está a praticar as técnicas forenses no escritório do famoso jurista Dr. Vaz Correia. Na sua douta explanação, o biógrafo traz à colação a histórica revolta da Maria da Fonte, iniciada no Minho em Março-Abril de 1846 e depois alargada, num crescendo da crise social, a outras regiões do país.
Isto deu-me a oportunidade de ir rever os manuais da universidade, nomeadamente a História de Portugal Contemporâneo – Político e Institucional, de João Medina, na edição da Universidade Aberta.
É bom sinal que um livro de ficção nos leve a descobrir ou relembrar certos temas da nossa história. A boa ficção é uma leitura séria e na maioria dos casos altamente científica.
A revolta da Maria da Fonte fez-se contra o governo ditatorial de António Bernardo de Costa Cabral (1803-1889), um governo que, apesar de ter saído de um golpe de Estado e restabelecido um regime constitucional conservador (a Carta), empreendeu medidas progressistas como a proibição dos enterros nas igrejas e recintos anexos. A reacção popular de cariz religioso a esta medida sanitária (via-se nela o afastamento dos defuntos da asa protectora da Igreja) foi seguida de grandes desacatos com assaltos de camponeses às sedes da administração civil, a arquivos da Fazenda e quartéis, tendo os revoltosos tomado as cidades de Braga e Guimarães.
Diz João Medina: «A Maria da Fonte foi uma reacção sobretudo provinciana, camponesa e agrária contra as reformas em geral do Liberalismo (legislações de Mouzinho, Joaquim A. de Aguiar e Silva Carvalho) e contra alguns aspectos mais modernos da política de fomento material empreendida pela ditadura dos Cabrais e, nesta medida, contra a própria modernização económico-social iniciada desde 1842.»
Claro que esta explosão social e a coligação negativa – como hoje se diz – que se estabeleceu (cartistas anticabralistas, setembristas e até miguelistas) acabou por determinar a destituição de Costa Cabral pela rainha D. Maria II.
Mas voltemos a Z. Zagalo e a Alípio Abranhos (não sei se repararam, mas é como ir de AA a ZZ, um vasto campo, o que talvez não seja inocente…). Era ideia do ilustre pensador político que o regime constitucional democrático deveria prevalecer sobre o autoritário, que essa seria a melhor forma de levar as ovelhas ao redil. Demos a palavra a Z. Zagalo: «O Conde d´Abranhos, com a sua alta intuição, sentiu que se estava preparando uma nova política, que, condizendo com o seu temperamento, seria o elemento natural em que a sua fortuna medraria como num terreno propício. Ele bem sabia que o governo nada perdia do seu poder discricionário – mas que apenas o disfarçava. Em vez de bater uma forte patada no país, clamando com força: – Para aqui! Eu quero! – os governos democráticos conseguem tudo, com mais segurança própria e toda a admiração da plebe, curvando a espinha e dizendo com doçura: – Por aqui, se fazem favor! Acreditem que é o bom caminho!»
Não sei o que estão os nossos leitores a pensar, mas, se calhar, estão a pensar o mesmo que eu.

11 abril 2020

10 abril 2020

Em formato TV


(imagem da série)


Através do nosso leitor José Moreira, chegou-nos a informação desta série de ficção da RTP, baseada na obra de Eça de Queirós, que estamos a ler no mês de Abril.

Se quiserem acompanhar, neste formato, o percurso político de Alípio Abranhos, fica o link para todos os episódios:


07 abril 2020

O CONDE D´ABRANHOS (1)


Falemos d’ O Conde d´Abranhos. Para começar, a carta-prefácio de Z. Zagalo, ex-secretário do «varão eminente» e seu humílimo biógrafo.
Esta carta é assim como um programa da narrativa a apresentar. O leitor percebe logo, e isso não lhe diminui o interesse, com que tipo de discurso se vai deparar. Um discurso laudatório sobre uma personagem pautada pelos valores fundamentais que alegadamente forjaram a grandeza da Pátria.
Portanto, esperamos ver no Conde de Abranhos o seu «ser moral», a sua «filosofia tão profundamente religiosa» e a «vasta ciência política» adquirida, além da profunda devoção à família – nomeadamente à segunda esposa, Dona Catarina, «um bálsamo» para a vida – e o seu reconhecimento aos servidores estrénuos e dedicados como este impagável Z. Zagalo metido a biógrafo da grande figura pública.
Sendo assim, vamos lá à leitura!

01 abril 2020

Abril é mês de "O Conde d'Abranhos" (mesmo sem sessão presencial)




A abrir:

“ALÍPIO SEVERO ABRANHOS nasceu no ano de 1826, em Penafiel, no dia de Natal. A Providência, por um símbolo subtil e engenhoso, fez nascer no dia sagrado em que nasceu Jesus de Nazaré, aquele que em Portugal devia ser o mais forte pilar e o procurador mais eloquente da Igreja, dos seus interesses e do seu reino.

Muitas vezes o Conde se comprazia em contar que, nessa noite de 24 de Dezembro de 1826, Inverno que ficou na história pelas grandes neves que caíram, seus pais – segundo a tradição venerada na família – tinham armado um presépio, como era costume nesses tempos em que a boa fé portuguesa amava a piedosa devoção dos altares íntimos. Ao centro do presépio, florido de muita verdura, entre os animais da narração evangélica, o Menino Jesus sorria, nos braços de uma Virgem, obra delicadamente trabalhada por Antão Serrano, o grande santeiro de Amarante. Em torno, ardiam as velas de cera; na cozinha, cantavam nas frigideiras os rojões da ceia; o lume de lenha húmida estalava jovialmente, e fora, na neve que caía, os sinos repicavam para a missa do Galo – quando a mãe do Conde, subitamente
Sentiu o tenro ser...
como diz o nosso grande lírico no seu poema, A Mãe…"

in “O Conde d’Abranhos” de Eça de Queiroz

Em Abril, continuaremos certamente sem nos podermos encontrar. Que isso não nos impeça, de ler o livro agendado para este mês!

"A MONTANHA MÁGICA". CRUÉIS, FLEUMÁTICOS E ENÉRGICOS

Vou lendo este livro que tem tanto a ver com o momento presente, ainda que nele seja um bacilo e não um vírus a desempenhar o papel da lúgubre Átropos, cortando impiedosamente o fio da vida.
Ludovico Settembrini, homo humanus, visita Hans Castorp no seu leito de enfermo. O jovem está constipado, uma doença secundária porque a principal, um foco húmido no pulmão, é a que lhe foi detectada pelo médico-chefe do sanatório, o conselheiro Behrens.
Conversam sobre a natureza dos alemães: cruéis, fleumáticos e enérgicos. Conversam sobre a doença e a morte. Diz Settembrini: «Permita-me, senhor engenheiro, permita-me que lhe diga e sublinhe
que a única forma salutar e nobre, que é ao mesmo tempo – e acrescento com toda a ênfase – a única forma religiosa de encarar a morte é considerá-la como parte integrante e componente da vida, é senti-la como condição sagrada da mesma, e não de algum modo – o que estaria nos antípodas do saudável, nobre, razoável e religioso – separá-la, no plano intelectual, da vida, colocando as duas em confronto ou até em oposição. Os povos antigos adornavam os sarcófagos com imagens da vida e da fertilidade, por vezes até com símbolos obscenos. No quadro do ideário religioso da Antiguidade, o sagrado coincidia, não raras vezes com o obsceno. Aqueles homens sabiam venerar a morte. É precisamente por ser o berço da vida, o seio da renovação, que a morte é venerável. Dissociada da vida, a morte transforma-se em fantasma, em monstro ou em algo ainda pior. Vista como força espiritual autónoma, a morte é extremamente devassa, podendo o seu magnetismo malévolo conduzir à mais abominável alienação do espírito humano.»
Bem, depois desta citação acho que já interessei uns tantos leitores pela obra… e afastei outros, talvez mais, da sua leitura…