30 janeiro 2020

BESTIÁRIO DE "A SELVA" (8)


O peixe-boi é um mamífero referido em A Selva que vive nos rios da Amazónia e pode pesar mais de 400 quilos e medir até 3 metros. No Cap. XV, os seringueiros foragidos, entretanto capturados, são açoitados com um peixe-boi por Alexandrino. Este peixe-boi não é mais que uma correia, um chicote ou um azorrague feitos de couro do animal. Recuperemos o que diz Elias perante a incredulidade de Alberto: «Vá à cozinha. Está lá o peixe-boi cheio de sangue. O Alexandrino bateu até fazer sangue. Foi ele mesmo que o disse… O João ouviu e o Tiago também. Os homens estavam amarrados e não se podiam defender…»

29 janeiro 2020

A FERROVIA DO DIABO

Cachoeira de Teotônio, Rio Madeira, Porto Velho

«… Este rio já teve dois grandes romances. Um, foi a construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré. Levou quase meio século a fazer-se. Os homens chegavam e a febres – zás – matavam eles. Morriam às centenas. Alguns trabalhadores que fugiam, tremendo com sezões, eram mortos também pelos índios de lá, que são de outra tribo. As companhias faliam e o material ficava a apodrecer. O dinheiro que se gastou naquela estrada de ferro dava para fazer uma vinte vezes maior. O outro…» – Cap. XIII de A Selva, fala do senhor Guerreiro.
Referia-se o guarda-livros à ideia surgida na Bolívia, em meados do século XIX, de escoar a borracha daquele país através dos portos atlânticos do Brasil. Na região de Porto Velho e a montante, as vinte cachoeiras do rio Madeira impediam a navegação. A ferrovia até ao troço navegável do rio parecia ser a solução, mas só acabou de se construir em 1912, quando a borracha amazónica entrara em declínio face à concorrência dos produtores asiáticos. Uma obra feita para nada com grande gasto de vidas e dinheiro. Por tudo, ficou conhecida pelo nome de “Ferrovia do Diabo”.

28 janeiro 2020

TEATRO AMAZONAS, MANAUS

Construído em 1896 no apogeu do primeiro ciclo da borracha, é bem o reflexo da prosperidade daqueles tempos. Na paragem feita pelo “Justo Chermont” (Capítulo III), Alberto saiu para a cidade à revelia das ordens de Balbino. Preocupado que estava em encontrar uma solução para a sua vida (é psicologicamente rico o episódio do comendador Aragão), acabou por não visitar o teatro. Diz-se no texto: «Renunciou a ver de perto o Teatro Amazonas, famoso em todo o norte do Brasil, com sua cúpula orgulhosa, que lhe sugerira, quando a vislumbrara de bordo, velha perspectiva de Constantinopla, encontrada nas páginas duma revista.»

27 janeiro 2020

A pacificação dos Parintintins


Na sequência da publicação anterior sobre Cândido Rondon, deixo cópia das últimas páginas do meu livro. Um mapa e um texto relativos à pacificação dos índios Parintintins e à acção humanista de Rondon. No  mapa, constam referências ao seringal Paraíso e à cabana de Todos-os-Santos.

CÂNDIDO RONDON (1865-1958)

Engenheiro militar, desbravador do sertão brasileiro e fundador do Serviço de Protecção ao Índio é referido por três ou quatro vezes em A Selva. Ferreira de Castro dedicou-lhe o seu último romance, O Instinto Supremo, «uma epopeia de humanitarismo» que narra as condições em que se desenrolaram as expedições para pacificação dos parintintins da Amazónia - esses que em A Selva levaram as cabeças dos seringueiros Feliciano e Procópio. O princípio adoptado por Rondon e os seus grupos pacificadores era, em relação aos índios, «antes morrer do que matar». Se bem se recordam do Cap. XIII do romance, a uma pergunta feita ao guarda-livros Guerreiro sobre o que se faria para punir os índios pela morte de Procópio, ele responde: «Antigamente era costume organizar um grupo de homens bem armados e mandá-los em perseguição dos parintintins. Mas o Rondon escreveu a pedir que não se tornasse a fazer isso. E eu acho que o pedido é justo. Está provado que estes índios não têm medo e serão precisos muitos anos e muitos sacrifícios para civilizá-los. Mandar quatro ou cinco homens persegui-los, é trabalho inútil. Só lhes acirra o ódio e mais nada.» 

26 janeiro 2020

BESTIÁRIO DE "A SELVA" (7)

«"Cobra Grande" [ou sucuriju] lhe chamavam em muitas lendas amazónicas, de que era personagem principal, senhora de variados poderes mágicos. Tão monstruoso tamanho alcançava, que Alberto vira, quando do baile, a pele seca de uma delas a servir de algeroz ao longo da barraca de Lourenço. A sucuriju emergia, à socapa, por entre as folhas da canarana, nas margens dos rios, e dum só golpe se lançava sobre cães e vitelos descuidados. Com os seu anéis implacáveis transformava carne e ossos numa pasta, que engolia vagarosamente, antes de remergulhar para as profundezas fluviais de onde saíra.»

25 janeiro 2020

"A Selva" e os "Gaiolas"


 Imagens daqui. Os “Gaiolas” Justo Chermont e Vitória

Os navios “gaiolas”, embarcações típicas da rede fluvial do Amazonas, eram peças fundamentais para o desenvolvimento económico, social e até mesmo político da região Amazónica. Transportavam de tudo, entre passageiros e carga. Uma das suas características era a possibilidade dos passageiros sem recursos, poderem armar a sua rede para dormir, em qualquer parte do convés mais desfavorecido. Navegavam rio acima, rio abaixo, aportando em cidades, vilas, aldeias, povoados ou apenas embarcadouros que serviam os barracões seringueiros, como descrito neste romance de Ferreira de Castro. Aqui, os “gaiolas” são referidos com regularidade e nomes como Justo Chermont, Vitória, Aymoré, Campos Sales ou Sapucaia, tornam-se familiares.
Aquando da viagem de Alberto para o Paraíso no Justo Chermont, há um momento em que este navio e o Vitória protagonizam uma espécie de regata competitiva.

“…
A Parintins, sucedeu Itacoatiara e, na outra margem, indicada pelos braços dos tripulantes, a bocarra do Rio Madeira. De lá saiu, rumando ao centro, em direcção também a Manaus, um novo “gaiola”. E ou porque o Justo Chermont diminuísse a marcha ou porque ele acelerasse a sua, em breve os dois se encontravam lado a lado, para o desafio comum e recreativo naquelas infindáveis viagens.

- É o Vitória! É o Vitória – exclamou-se entre o ruído de satisfação que o prélio causava, quando o adversário esteve perto.

O telégrafo do Justo Chermont retiniu na casa das máquinas e logo à popa aumentou o referver da água em torvelinho.
Dum para o outro barco, faziam-se sinais nervosos, cada qual vaticinando o êxito daquele que o conduzia e procurando amesquinhar a capacidade do rival. A primeira classe, mais moderada, assistia com um sorriso à regata mecânica, mas todos contagiados pelo ambiente de luta, tanto mais que o Comandante Patativa afirmara que havia de dar uma lição ao atrevido, reincidente em lançar-lhe cartel de desafio.
Todavia, o Vitória, intrépido na sua pequenez, manteve o talhamar na mesma linha, durante quase uma hora. Cedeu, por fim, dez metros agora, vinte logo, até que reconhecendo a impossibilidade de competir por mais tempo, silvou ao adversário um irónico “boa viagem”. Pela primeira vez na sua longa carreira, o Comandante Patativa não levou a mão à corda do apito para corresponder àquela saudação da praxe.
…”

Ferreira de Castro, “A Selva", Capítulo III

BESTIÁRIO DE "A SELVA" (6)

«o tamanduá-bandeira, de cauda em estandarte e saudoso do manjar que lhe forneciam os formigueiros, altos como guaritas de castelos;»  - FERREIRA DE CASTRO, A Selva, Cap. VIII.
Neste trecho do romance, o narrador refere a restinga onde, ante a subida diluviana das águas do rio e igarapés, se aglomerava toda a sorte de animais terrestres: a paca, a anta, a cotia, o tatu, o veado, a onça predadora (que tinha o privilégio de ter a comida mesmo ali ao pé), enquanto do alto contemplavam esta Arca de Noé as aves de movimentos livres como o quatipuru, o capijuba, os barrigudos e os pregos. 

24 janeiro 2020

BESTIÁRIO DE "A SELVA" (5)


  Imagens da net - Tartaruga pitiú e tartaruga tracajá

“…
O caboclo abandonava, então, a foz dos igarapés e vinha apanhar na areia, as tartarugas que saíam para desovar.
Alberto seguira, também, uma noite, pelo declive arenoso, os dois traços com que o bicho marcava a sua passagem. E lá o fora encontrar, já de volta e espantado, a fugir à sua frente, sentindo a vida em perigo. Mas não. Ele corria por correr, receoso de levar a mão ao casco fugitivo, não fosse ela ficar na boca da tartaruga.
- João! João! Lá vai uma!
Do cozinheiro só se via o farol, a deambular sobre a praia. Mas João era assaz ladino para cortar a dianteira ao anfíbio alarmado. Apanhou-o já rente à água, introduzindo os dedos entre a cabeça e o casco, e firmando rápido, o pé, cá atrás, junto ao rabo. Com a força que fazia, esgaravatando na areia, a própria tartaruga, subitamente retida, se voltava de peito para o ar.
- Já chega por esta noite – disse João
- Quantas?
- Virei três pitiús, cinco tracajás e esta
- Já é bem bom!
…”

Ferreira de Castro, "A Selva", Capítulo XII

Ficamos sem saber de que espécie era esta… Felizmente, hoje, as tartarugas já são espécie protegida!

BESTIÁRIO DE "A SELVA" (4)

O pirarucu, denominado “bacalhau da Amazónia”, é um peixe da bacia do Amazonas e de outros rios do Brasil. Em A Selva, faz parte da dieta dos seringueiros, como se pode ver no Capítulo IV: «Mas com os “brabos”, ignorantes do que era e não era indispensável, Juca Tristão (…) organizava a lista do aviamento: o boião para defumar, a bacia para o látex, o galão, o machadinho, as tigelinhas de folha, todos os utensílios que a extracção da borracha exigia – e mais um quilo de pirarucu e uns litros de farinha (…)».
Se se lembram de Seara Vermelha, de Jorge Amado, este peixe abundante era dado aos retirantes cearenses quando, depois de ultrapassada a inóspita caatinga, viajavam de barco no rio São Lourenço rumo a Pirapora e às promissoras lavouras de café em São Paulo. A fome transformava-se em fartura: pirarucu cozido, arroz e pirão feito com o caldo gordo do peixe. A comida forte em corpos fracos originava desinterias e mortes. 

23 janeiro 2020

BESTIÁRIO DE "A SELVA" (3)

 Imagens da net - garça, jaburú, maguari

“…

Puseram-se a andar sobre a folhagem que alarmava a floresta com o range-range da pisadura. Depois, Firmino deteve-se, levando o dedo aos lábios:
- Schiu! Agora devagarinho…

E mais além:
-Olhe, olhe!
Por uma fresta da selva vislumbrava-se pequena clareira – o chão negro lamacento e sobre ele pernaltas de linda plumagem. Alberto reconheceu logo a garça nívea e delicada, o jaburú tristonho, o maguari pensativo, como se se houvesse despregado de um templo oriental – e outras mais, muitas outras que só memória prodigiosa identificaria entre a variedade sem fim…
(…)
Indicando as aves esbeltas, que eram mimo de beleza na solidão imperante, Firmino interrogou, pondo o rifle em linha de disparo:
- Quere que mate uma?
- Come-se?
- Para comer não vale a pena gastar bala…
- Então não mate.
…”

Ferreira de Castro, "A Selva", Capítulo VI

DO LÁTEX À BORRACHA

Imagens tiradas do livro O Seringal e o Seringueiro, de Arthur Cezar Ferreira Reis. Edição do Ministério da Agricultura, Rio de Janeiro,1953. As tigelas colocadas sob as incisões feitas na árvore para recolha do látex, a defumação e as bolas ou "peles de borracha" - tudo como é descrito por Ferreira de Castro em A Selva. 


22 janeiro 2020

BESTIÁRIO DE "A SELVA" (2)

«Da água presa, como a do igapó, na concavidade da terra e abandonada pelas outras, que se tinham escoado mal o rio dera em vazar, ficara apenas um charco, onde se recolheram quantas vidas por lá deambulavam.
(...)
Deslizavam também, ondulando para abrir caminho nessa vaza pestilenta, os temerosos puraqués, que tinham sete fôlegos de gato e pele viscosa de enguias.
Firmino aguçou a ponta de pequena vara e com ela fisgou um.
- Não lhe toque, seu Alberto!
- Porquê?
- Vai ver...
Despiu a blusa, numa das mangas envolveu o cabo do seu facão e com a lâmina roçou de leve o dorso do puraqué.
- Agora toque aqui... Mas só com um dedo - e indicava o espigão do terçado, que aparecia na extremidade da madeira. Alberto obedeceu e logo se sentiu percorrido por um forte choque eléctrico.
Firmino sorria e explicava:
- Este bicho é assim. Se um homem tem o coração fraco e lhe toca dentro de água, pode ir para o outro mundo...»

--- FERREIRA DE CASTRO, A Selva, Capítulo VI.

21 janeiro 2020

BESTIÁRIO DE "A SELVA" (1)

«Subitamente, porém, Firmino deteve-se, fez um gesto rápido a Alberto e, tirando o rifle do ombro, apontou para a frente. Um tiro soou.
(...)
Firmino deteve-se um pouco mais além, a examinar a terra, as folhas dos arbustos e a espreitar para dentro da selva. (...)
- Escapuliu-se! Vamos! - gritou de lá.
Alberto aproximou:
- Que foi? 
- Uma anta. Deve ter apanhado bala, mas não deixou sangue. Era do tamanho dum novilho.
- E come-se? 
- Se se come! É da melhor carne que tem o Amazonas.»

--- FERREIRA DE CASTRO, A Selva, Capítulo V.

02 janeiro 2020

"A Selva" de Ferreira de Castro - 31 de Janeiro às 21h00


A abrir o novo ano e o trimestre “(re) leituras”, voltamos a Ferreira de Castro e ao belíssimo, "A Selva", um romance extraordinário sobre a vida dos seringueiros na selva amazónica, quando o ciclo da borracha iniciava a sua curva descendente.