O 2º Trimestre chega com a
comemoração dos 50 Anos do 25 de Abril. Os autores foram escolhidos no âmbito
desta comemoração. Assim, em Abril estaremos com “Portugal, a Flor e a Foice”
de J. Rentes de Carvalho.
Blogue da Comunidade de Leitores da Biblioteca de S. Domingos de Rana - Cascais - Portugal
O 2º Trimestre chega com a
comemoração dos 50 Anos do 25 de Abril. Os autores foram escolhidos no âmbito
desta comemoração. Assim, em Abril estaremos com “Portugal, a Flor e a Foice”
de J. Rentes de Carvalho.
Ontem tivemos mais uma atividade fora de portas: manhã de poesia no Cemitério dos Prazeres, onde homenageámos alguns dos poetas, ali eternamente residentes: Mário Cesariny, Jorge de Sena, Cesário Verde, Al Berto, António Ramos Rosa e Alcipe, Marquesa de Alorna. Com um programa bem delineado e coordenado pelo Manuel Nunes e pela Paula Silva, a quem todos agradecemos, para além de ficarmos a saber um pouco mais da vida daqueles poetas, foram ditos vários dos seus poemas pelos nossos inspirados leitores. Uma bonita manhã de quase Primavera que terminou com mais um salutar almoço convívio.
Poema
Em todas as ruas te encontro
A abrir
“Estava ali havia um bom pedaço
vindo da esquina até defronte do prédio onde ela servia, enervado de esperar
tantos minutos, pois já lhe assobiara o sinal combinado e ela ainda não
aparecera, nem sequer à janela, aquietando-lhe a dúvida que começava a
preocupá-lo.
Naturalmente dera-lhe trela
naquele Santo António por desfastio ou porque a noite convidava à conversa.
Abalara até ao Rossio, embora cansado do trabalho do armazém, mas mais cansado
ainda dos maus modos dos primeiros-caixeiros, piores no trato do que os patrões,
convencidos de que assim chegariam mais depressa a sócios da casa.
Encaminhara-se para ali fugindo à solidão do quarto, que lhe aumentava as dores
de cabeça que trazia do emprego. Tinham fechado mais cedo, porque os santos
eram dias alumiados e, talvez também pelo hábito de sair só depois da uma hora
batida, se sentira atraído pelo ruído da rua. Não procurara com quem
acamaradar; escusara até, com um pretexto qualquer, a companhia de outro
hóspede da casa, entristecido pelas saudades da sua aldeia de mistura com
queixumes da vida. Mudara de fato e saíra, metendo no bolso umas moedas para
beber o seu copo e arranjar, se calhasse, uma moça para passar o tempo, pois,
em noite de bailaricos e fogueiras, as mulheres acessíveis são ainda mais
fáceis…”
In “Os Reinegros” de Alves Redol
Alguns leitores da
Comunidade estiveram na passada sexta-feira, dia 2, no Supremo Tribunal de Justiça.
Cumpria-se a apresentação do romance de Carlos Querido a cargo do Juiz
Conselheiro Henrique Araújo, presidente daquele Tribunal.
A intervenção de
Carlos Querido integrou uma alusão à Comunidade e à nossa participação em
anteriores sessões sobre obras suas, nomeadamente as que tiveram lugar na Feira
do Livro em torno do romance histórico “A
Redenção das Águas” e da colectânea de contos “Habeas Corpus”.
De “Alegações Finais”, destacamos a lição de vida que o enredo contempla, a história de um advogado, filho de famílias humildes, que não obstante o triunfo profissional não logrou alcançar uma vida feliz face a desvios de carácter que lhe arruinaram o casamento. O romance desenvolve-se segundo um registo de escrita em que a voz do narrador se confunde com as das personagens e as suas correntes de consciência. Julgamos surpreender muitas das preferências artísticas, literárias e musicais do autor frequentemente trazidas ao curso da história. Claro que a actividade profissional de Carlos Querido (juiz desembargador) sente-se presente em todo um conjunto de termos e procedimentos jurídicos que, tratando-se o protagonista de um advogado, dão consistência ao discurso narrativo. Terão tido sucesso as alegações finais da infeliz personagem na sua tentativa de reganhar a harmonia conjugal? O romance não o diz, terminando de uma forma que permite considerá-lo como uma “obra aberta”.
O DRAMA EM GENTE
Fingiram todos,
todos me fingiram
e em tradição me deram
fingimento
É certo que eram outros
tempos outros,
em que ser muitos
era coisa ausente
Mas todos me fingiram
e ensinaram
que o comboio de corda
pode ser
de corda a sério,
não de coração
Também eu tive,
embora em outra esfera,
outras noites de verão
Nada lhes devo
e em tudo, embora,
devedor lhes sou
Que os séculos agora
lhes dêem o sossego
ou dêem nada –
Ou nem que seja
a dor do universo,
como a dor de cabeça
infinita, silente,
de que padeço para sempre
e desde
que eles vieram
visitar-me os sonhos
- ANA LUÍSA AMARAL, Escuro, 2014
AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
- FERNANDO PESSOA, Presença, nº 36, Novembro de 1932
“… Elena atravessou, está dentro da colónia. Fê-lo às primeiras horas, ao abrir da fronteira. Andou a fazer tempo nas proximidades enquanto tomava um café – mais chicória do que outra coisa – num pequeno quiosque situado junto da fronteira até que viu aparecer o doutor Zocas, que naquela manhã tinha servido no Colonial Hospital. Foi ao encontro dele com ar casual, que surpresa, doutor! Et cetera, e assim atravessaram junto a fronteira, a conversar com aparente naturalidade enquanto ela disfarçava a tensão: um olhar rotineiro dos alfandegários britânicos, uma saudação destes a Zocas, o longo percurso através da pista do aeródromo e Casemates Square até se despedirem na Main Street…”
In “O Italiano” de Arturo Pérez-Reverte
“…Brilha o céu, tarda a
noite, o tempo é lerdo, a vida baça, o
gesto flácido. Debaixo de sombras irisadas, leio e releio os meus livros,
passeio, rememoro, devaneio, pasmo, bocejo, dormito, deixo-me envelhecer. Não consigo comprazer-me desta
mediocridade dourada, pese o convite e o consolo do poeta que a acolheu. Também
a mim, como ao Orador, amarga o ócio, quando o negócio foi proibido. Os dias
arrastam-se, Marco Aurélio viveu, Cómodo impera, passei o que passei, peno
longe, como ser feliz? Mara, mais além, borda, sentada numa cadeira alta de
vime, junto aos degraus da porta. Há́ pouco, ralhava com as escravas. Agora
ri-se com as escravas. Em breve ralhará com as escravas. Do local em que me
encontro não consigo ouvi-la, mas quase adivinho as razões dos risos e dos
ralhos. É-me agradável saber que Mara está perto, e reconhecer-lhe tão bem,
desde há́ tantos anos, os trejeitos e os modos. Momentos atrás, sem nenhuma
razão especial, veio até junto de mim, com o seu animal de regaço que é agora
um gato cinzento, depois de, em hora nefasta, ter perdido a rola, muito alva,
que lhe vinha comer à mão…”
In “Um Deus Passeando pela
Brisa da Tarde” de Mário de Carvalho