24 novembro 2016

LEITURAS DE 2017

Para que saibam, ó incautos leitores, o plano de leituras para 2017 está em gestação. Sugestões de um lado, palpites de outro, e a coisa vai avançando, ainda com lista provisória. Livros de 500 páginas não serão permitidos, os olhos agradecem. Teremos um trimestre dedicado à literatura angolana, outro à literatura erótica... Consta perspectivarem-se algumas ausências à sessão do próximo sábado: importantes colóquios, deveres profissionais e outras razões atendíveis. Quem faltar que depois não se queixe. Além de perder a discussão de um belo livro - Vidas Secas, de Graciliano Ramos - vai deixar, talvez, de poder indicar o livro que gostaria de ver discutido no próximo ano. Até sábado! 



17 novembro 2016

MORTE E VIDA SEVERINA


Ontem, lendo as primeiras narrativas de Vidas Secas, lembrei-me de Morte e Vida Severina (1955), de João Cabral de Melo Neto, texto muito lido e comentado nos meus círculos juvenis de finais de sessenta. O exemplar aí em cima foi comprado no Centro do Livro Brasileiro – R. Rodrigues Sampaio, 30-B, Telef. 46470, Lisboa –, conforme etiqueta colada na última página. “Auto de natal pernambucano”, assim se diz em subtítulo. Na verdade, a história de um retirante em direcção ao Recife, acossado pela miséria e a fome – uma “vida seca”.

Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.

08 novembro 2016

"Vidas Secas" de Graciliano Ramos - 26 de Novembro às 15h00


A abrir:

" NA PLANICIE avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala.
Arrastaram-se para la, devagar, Sinha Vitoria com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aio a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás. Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão.
- Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.
Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isto não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo.
A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas.
O voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos.
- Anda, excomungado.
O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou mata-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário - e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde.
Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés.
Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a ideia de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, cocou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinha Vitoria estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados no estômago, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a Sinha Vitoria, pôs o filho no cangote, levantou-se, agarrou os bracinhos que lhe caiam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinha Vitoria aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis.
E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silencio grande..."

in "Vidas Secas" de Graciliano Ramos, Capítulo I