29 dezembro 2020

E 2020 chega ao fim… sem deixar muitas saudades

Ilustração de Jonathan Wolstenholme

Dois mil e vinte está a chegar ao fim e com ele mais um ano de leituras para esta Comunidade.

Em retrospetiva, percebemos que foi um ano muito estranho e fora de comum, tudo por conta de uma virose coletiva. Adiante se verá… 

O primeiro trimestre do ano “(re)-leituras”, foi intenso!

Em Janeiro, Ferreira de Castro e “A Selva”, transportaram-nos à exuberância da selva amazónica e à vida penosa dos seringueiros, já em tempo de declínio da comercialização da borracha. Descobrimos todo um exótico mundo novo, modos de vida surpreendentes e um léxico praticamente desconhecido, como “gaiolas”, “igarapé”, “pirão”, “brenha”, “parintintins” ou “cunhantã” entre outros. 

Em Fevereiro, chegou Agustina com “A Sibila” e um universo rural e predominantemente feminino, levando-nos a descobrir uma galeria de mulheres decididas, de personalidades distintas, mas todas perseguindo e atingindo objetivos muito precisos. 

Ainda neste mês, celebrou-se o dia internacional da Língua Materna e a Câmara Municipal de Cascais promoveu o facto, publicando um vídeo alusivo, que contou com a participação de 2 elementos desta Comunidade, através da leitura de 2 poemas da Sophia de Mello Breyner: "Com Fúria e Raiva" e  "Habitação". 

O mês de Março de 2020, que ficará na história da humanidade, até começou bem, com uma visita à Exposição de Álvaro Pirez d’Évora, no MNAA. 

Em seguida mergulhámos todos numa espécie de realidade paralela ou filme da Twilight Zone, com a explosão da pandemia Covid’19, provocada por um Vírus que ficou famoso e cujo nome nos faz tremer nas bases: o Corona. 

Para combater o confinamento obrigatório, Jorge Amado, Jubiabá e as histórias da história de António Balduíno, foram uma ajuda preciosa. Com a Biblioteca fechada e a proibição de reuniões com um grande número de pessoas, não houve sessão presencial, mas conseguimos manter contacto e trocar ideias através das redes sociais, que se revelaram ótimas para situações como estas. Penso mesmo que, por conta do Corona, o nosso blogue ficou mais rico… 

O segundo trimestre – Eça & Cª, prometia…

Assim, com o estado de emergência em vigor e confinados cada um a sua casa, o mês de Abril trouxe-nos Eça de Queirós e o seu “Conde d’Abranhos”, personagem que descobrimos através dos maiores encómios do seu secretário Z. Zagalo:  “Alípio Severo Abranhos, Conde d'Abranhos…varão eminente, Orador, Publicista, Estadista, Legislador e Filósofo”. Na realidade e após a leitura, o que se revelou foi um político pobre de espírito, incompetente, oportunista, lambe-botas e vira-casacas.

Neste mês continuou a não ser possível uma sessão presencial, pelo que usámos a tecnologia disponível e reunimos em formato teleconferência. Correu muito bem e só nos faltou a partilha dos habituais bolinhos e bolachinhas. 

No mês de Maio, ainda confinados, voltámos a reunir via Zoom, para discutir a “A educação sentimental” de Gustave Flaubert, seguindo o percurso do jovem egocêntrico Frédéric Moreau. 

Entre Junho e Outubro suspendemos as sessões da Comunidade. A impossibilidade de reunir presencialmente, alguma dificuldade de acesso às plataformas digitais e outras questões relacionadas com a pandemia (sobretudo um cansaço coletivo muito desmotivador), assim o ditaram. No entanto, a maior parte dos leitores continuou com as leituras agendadas.  Assim, Balzac, Roth, Atwood e Steinbeck fizeram-nos companhia durante tempos difíceis. Os livros são sempre uma opção vencedora! 

Com a boa vontade dos responsáveis pela nossa Biblioteca, que num esforço feliz garantiram as condições de segurança e higiene necessárias, realizámos finalmente uma sessão presencial no dia 6 de Novembro, onde pudemos contar com a presença de 17 dos membros da Comunidade. O romance “Pão de Açúcar” do jovem escritor Afonso Reis Cabral, que estava alinhado para Outubro, foi o mote para o animado reencontro e abertura do 4º Trimestre, dedicado a “Recém-Laureados”. 

A 27 Novembro, mais uma feliz sessão presencial com 18 elementos, que se debruçaram sobre a personalidade de Olga Tokarczuk e o seu surpreendente e fragmentado “Viagens”. Um desconcerto em movimento contínuo sem nunca olhar para trás, numa nómada digressão pelo espaço e pelo tempo, é o que me ocorre dizer.

Fruto de discussão e propostas entre leitores, ficou ainda definido nesta sessão, o Plano de Leituras para 2021. 

E continuando em modo presencial, Dezembro, por norma o mês mais mágico do ano, trouxe-nos “As Pálidas Colinas de Nagasáqui” de Kazuo Ishiguro. Um romance que provocou reações diversas entre os leitores. Uns, gostaram, outros, não. Leituras diferentes para uma escrita um pouco melancólica, mas muito bonita (digo eu) que, neste caso, apresenta diversas pontas soltas e muitas questões sem resposta. Intencional por parte do escritor? Certamente que sim e daí as diferentes leituras e apreciações. 

E assim 2020 chega ao fim, a deixar poucas ou mesmo nenhumas saudades. E não falo das nossas leituras!

Avancemos para o novo Ano com otimismo e esperança em dias melhores. 

Feliz Ano Novo!

23 dezembro 2020

Feliz Natal!


Bing Crosby & David Bowie - "The Little Drummer Boy (Peace On Earth)"

Este é o meu postal de Natal para todos: o meu vídeo musical de natal preferido. O diálogo inicial é delicioso e a interpretação que se segue, sublime!
 
Feliz Natal!

17 dezembro 2020

Nagasáqui, Parque da Paz

 

Parque da Paz em Nagasáqui (foto daqui)

“…Os ornamentos típicos, como arbustos e fontes, tinham sido reduzidos ao mínimo, o que transmitia uma sensação de austeridade, com o relvado plano, o extenso céu de Verão e o monumento em si mesmo - uma estátua branca, enorme, em memória das pessoas mortas pela bomba atómica - a dominar todo o recinto.

A estátua parecia um deus grego musculado, sentado com os braços abertos. Com a mão direita apontava para o céu, de onde a bomba tinha caído. Com o outro braço, estendido para a esquerda, estava supostamente a suster as forças do mal. Tinha os olhos fechados em oração.

Sempre tive a sensação de que a estátua tinha um aspeto bastante desajeitado e nunca consegui associá-la ao que aconteceu no dia em que a bomba caiu, nem aos dias terríveis que se seguiram…”

In “As Pálidas Colinas de Nagasáqui”, parte dois, capítulo 8

Ao longo do romance aparecem algumas referências à bomba atómica, mas quase que de forma subtil, como se isso interessasse pouco para o desenrolar do história. Puro engano, digo eu, as influências do ataque nuclear e da guerra estão lá em cada linha, cada parágrafo...


06 dezembro 2020

"AS PÁLIDAS COLINAS DE NAGASÁQUI" (1982) - ALGUNS TÓPICOS

O romance de Kazuo Ishiguro deixa  várias interrogações ao leitor: – Qual o destino de Sachiko e sua filha Mariko? Que vida era a de Niki em Londres e, sobretudo, a de Keiko em Manchester? Qual o sentido profundo das inquietantes recordações de Etsuko, narradora e protagonista?

O romance desenvolve-se em dois planos de tempo e espaço: o do tempo presente (Inglaterra),  fim da década de setenta ou princípios da de oitenta; e o do tempo recordado (Japão), um certo Verão dos primeiros anos do pós-guerra.

É clara ao longo da história a oposição entre os valores do Japão tradicional e os da sociedade que se seguiu à rendição, o interesse pela América triunfante e a sua cultura – como se vê pelo confronto entre Ogata-San e Shigeo Matsuda (Capítulo 9 da Parte Dois) e a persistente atracção de Sachiko pelo “sonho americano”, pela grande nação onde a filha poderia vir a ser uma mulher de negócios ou uma actriz bem sucedida.

A penetração da cultura americana no Japão destroçado (há referências ao ataque nuclear e às suas consequências) está igualmente presente no segundo romance de Ishiguro, Um Artista do Mundo Flutuante (1986), num episódio de 1948 em que o neto do narrador, nas suas brincadeiras, adopta a figura de um cowboy (Lone Ranger), desprezando os ensinamentos heróicos dos antigos samurais.

----- E agora, lançados estes tópicos, dizei, leitores, como vão as vossas leituras.

 

01 dezembro 2020

“As Pálidas Colinas de Nagasáqui” de Kazuo Ishiguro – 18 de Dezembro às 20h00


A abrir:

“Niki, o nome que finalmente demos à minha filha mais nova, não é um diminutivo; foi um acordo a que cheguei com o pai dela. Porque, por mais paradoxal que possa parecer, foi ele que quis que ela tivesse um nome japonês, ao passo que eu – talvez por um qualquer desejo egoísta de não ter de recordar o passado – insisti que o nome fosse inglês. Acabámos por concordar com Niki, talvez por acharmos que tinha um vago tom oriental…”

In “As Pálidas Colinas de  Nagasáqui” de Kazuo Ishiguro


28 novembro 2020

PLANO DE LEITURAS 2021

Duas Raparigas Lendo (1934), de Pablo Picasso 

1º trimestre: 29 de Janeiro, 26 de Fevereiro e 26 de Março

«Escuto a América a cantar, as várias canções que escuto» - WALT WITHMAN

- Não Matem a Cotovia, de Harper Lee

- As Vinhas da Ira, de John Steinbeck

- O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway

2º trimestre: 30 de Abril, 28 de Maio e 25 de Junho

«Última flor do Lácio, inculta e bela» - OLAVO BILAC

- Cemitério de Pianos, de José Luís Peixoto

- Levantado do Chão, de José Saramago

- Olhai os Lírios do Campo, de Erico Veríssimo

3º trimestre: 30 de Julho, 27 de Agosto e 24 de Setembro

«Bem próvida a natura quando alteou / Entre nós e os tudescos / Dos fortes Alpes o limite duro» - FRANCESCO PETRARCA

- O Leopardo, de Tomasi di Lampedusa

- O Nome da Rosa, de Umberto Eco

- Se numa Noite de Inverno um Viajante, de Italo Calvino

4º trimestre: 29 de Outubro, 26 de Novembro e 17 de Dezembro

«A única coisa que nos resta diante dessa inelutável derrota a que chamamos vida, é tentar compreendê-la. Eis aí a razão de ser da arte do romance» - MILAN KUNDERA

- A Sul da Fronteira, a Oeste do Sol, de Haruki Murakami

- O Mar, o Mar, de Iris Murdoch

- O Triunfo dos Porcos, de George Orwell


24 novembro 2020

LIÇÃO DE ANATOMIA

 ADRIAEN BACKER, Lição de Anatomia do Dr. Frederik Ruysch (1670)

«O pintor conseguiu captar na expressão facial do jovem Ruysch a autoconfiança aliada à astúcia de comerciante. O corpo retratado está pronto para ser dissecado; em poucas palavras, o cadáver do homem ainda novo é fresco; parece estar vivo - a pele é de uma cor rosada e leitosa e em nada faz lembrar um cadáver; o joelho dobrado parece o movimento de um homem que, deitado nu e de costas, instintivamente tenta tapar as partes vergonhosas do corpo ante os olhares de estranhos. Trata-se do corpo de um enforcado, o ladrão Joris van Iperen.» - OLGA TOKARCZUK, Viagens, p. 189.  

21 novembro 2020

JOSEPHINUM, VIENA

O museu Josephinum foi construído entre 1783 e 1785 para a Academia de Medicina e Cirurgia e expõe modelos de cera do corpo humano.



Viagens, de Olga Tokarczuk, dedica-lhe o fragmento "Colecções de Modelos de Cera". A descrição impressiona, certamente não mais que as peças vistas ao vivo. «Sentei-me junto à janela, num banco duro, diante da multidão silenciosa de modelos de cera e, exausta, deixei que uma onda de comoção me invadisse. Que músculo é este que me dá um nó na garganta? Como se chama? Quem inventou o corpo humano? E, nesta sequência, quem detém sobre ele os eternos direitos de autor» (p. 111). Uma comoção de dúvidas em que  não cabem verdades absolutas. 
 

19 novembro 2020

FALAR DE AEROPORTOS

 

«Tal faz com que, na Psicologia da Viagem, tenha surgido ultimamente a ideia da sua supremacia sobre os outros ramos, chegando-se ao ponto de se defender que não pode haver outra Psicologia a não ser a Psicologia da Viagem.»

-- OLGA TOKARCZUK, Viagens


Tocado pela escrita da nossa autora deste mês, venho falar de aeroportos.

Duas experiências apenas, pontuais e insignificantes. Quantas de bem mais robusto interesse não terão para contar as nossas leitoras? Ah, a Psicologia da Viagem! Que falem agora, ou então calem-se para sempre.

1ª experiência:

Barcelona, aeroporto d´El Prat de Llobregat, há uma carrada de anos.

Saí pelas 9 horas da manhã de um hotel na Diagonal à boleia de pessoa amiga que ia trabalhar para o seu escritório na zona do aeroporto. Meia hora depois ali estava, só que o meu voo para Lisboa era ao fim da tarde. Porque não fiquei a passear pelas Ramblas ou pelo Paseo Marítimo e me fui meter, com antecedência de oito ou nove horas, naquele antro de partidas e chegadas, de escadas rolantes e vozes multilingues disparadas como balas dos canos estriados dos altifalantes? Quis aproveitar a boleia, foi isso, conversar mais uns minutos com quem me levava, e ali permaneci todo o dia claro com a pequena mala que tinha por bagagem, observando, lendo e rabiscando umas notas sem préstimo. Almocei uma sandes de boa catadura e gosto indiferenciado que me custou um ror de pesetas, saudosa divisa, as moedas mostrando a cara daquele rei que veio a especializar-se em caçadas de elefantes e negócios comissionados. Acho que a certa altura me fartei. Então errei pela vastidão dos espaços, entrei nas casas-de-banho só para me ver aos espelhos, fiz perguntas impertinentes aos balcões das companhias aéreas, tais como qual é o preço de uma viagem para Miami ou com que frequência há saídas para o Rio de Janeiro. Ah, lembro-me bem, vi mulheres belíssimas de todas as cores e feitios. Foi bom, mas para um dia inteiro é cansativo. Fui o primeiro a fazer o check-in, eram 5 horas da tarde.

2ª experiência:

É como que simétrica da anterior. Voo de Lisboa para Veneza, há cerca de um ano.

O avião levantava antes das 7 da manhã, tinha de estar no aeroporto pelo menos uma hora antes. Achei pouco seguro sair de casa (arredores de Lisboa) de madrugada. Pensava que poderia não encontrar táxi ou que, se ajustasse previamente o serviço, o taxista poderia falhar por qualquer razão imprevista. Nunca tinha saído num voo tão madrugador e não queria arriscar-me a ficar em terra: um caso certamente merecedor de análise no âmbito da Psicologia da Viagem. Cheguei ao aeroporto à 1 da manhã, quando cessam os voos de partida e chegada. Depois desta hora tudo se transforma: há carros de aspiração e limpeza em circulação; operários trabalhando com o ruído dos seus berbequins a retirar e a colocar painéis publicitários; há luzes que se apagam ou diminuem de intensidade. Há quem durma nos esconsos do amplo espaço sobre cartões e mantas: passageiros a aguardar viagem ou sem-abrigo em lugar protegido e climatizado? Não cheguei a apurar. Dormir nos bancos é propósito ínvio, tanto pela configuração e incomodidade dos assentos como pelo barulho dos trabalhadores em acção. Desisti de dormir, fiquei a ver o circo. Pelas 3 horas da manhã, uma miúda de vinte e poucos anos veio ter comigo. Estava ali por razões mais ou menos idênticas às minhas: eu aguardava a partida, ela esperava a chegada de um amigo num voo de Cabo Verde, lá para as 5 e tal da manhã. Por essa hora não tinha transporte, então veio para o aeroporto à meia-noite.

“Está à espera de que voo?”

“Estou à espera de partir, vou para Veneza.”

“Ah, Veneza, a minha avó esteve lá no ano passado, não gostou.”

Imaginei a pobre senhora na Praça de São Marcos, cercada de hordas de chins e outros povos estranhos, a circularem aos magotes pelas bordas dos canais e ela em grande perigo de cair à água, desejosa de se ver ao sol de Lisboa e em terra firme do seu bairro.

“O patrão do meu amigo deu-lhe uma semana de férias por ter feito um bom trabalho. Pagou-lhe a viagem. Por outro não estava aqui, mas este amigo merece.”

Não aprofundei, mas cá para mim era amigo colorido. Apreciei a forma como a ele se referia e lembrei-me do nosso rei trovador.

Ai flores, ai flores do verde pino,

se sabedes novas do meu amigo?

Ai Deus, e u é?

Acho que lhe perguntei o nome, gosto de saber o nome dos meus interlocutores, mas se mo disse já o esqueci. A amor é bonito. Uma noite passada no aeroporto também.



09 novembro 2020

“Viagens” de Olga Tokarczurk – 27 de Novembro às 20h00


 Abri o livro ao acaso e deparei-me com a história que se segue

“…

Expedições ao Pólo Norte

Lembrei-me hoje de uma coisa de que Borges se lembrou em tempos – ele lera algures que, nos tempos da construção do império dinamarquês, os padres dinamarqueses anunciavam nas igrejas que todo aquele que participasse numa expedição ao Pólo Norte mais facilmente alcançaria a salvação da alma. Como tal não suscitou muitos interessados, os padres acabaram por admitir que se tratava de uma expedição longa e difícil que não era para todos, mas somente para os mais corajosos. Ainda assim não houve muitos interessados. Por conseguinte, para não perder a face, os padres rectificaram o seu anúncio – em verdade, toda e qualquer viagem podia ser considerada como expedição ao Pólo, até mesmo uma excursão ou um passeio de charrete pela cidade.

Hoje em dia, certamente, até podia ser uma viagem de metro.

…”

In “Viagens” de Olga Tokarczurk

 

Agora vou voltar ao início e começar em modo “Existo”…

08 novembro 2020

REGRESSO ÀS SESSÕES PRESENCIAIS

Assim foi disposta a sala polivalente para a nossa sessão da passada sexta-feira. Em discussão o romance Pão de Açúcar, de Afonso Reis Cabral. Os leitores sentaram-se cadeira sim, cadeira não, cumprindo todas as normas de segurança da Direcção Geral de Saúde. Compareceram 17, não longe dos 25 da média de presenças em tempo normal.

Agradecemos aos coordenadores e demais pessoal da Biblioteca Municipal de São Domingos de Rana a organização física da sessão e todo o carinho que têm dispensado às actividades da Comunidade de Leitores.

02 outubro 2020

“Pão de Açúcar” de Afonso Reis Cabral - 6 de Novembro às 20h00 (Data e horas atualizadas)

Abri e calhou o capítulo 14 que começa assim:

 “Espreitei para dentro da barraca e encontrei-a a dormir. Pendurei o saco de pão na porta, como na aldeia, e atirei a mangueira para a gravilha. Levava uma surpresa na mochila.

Era bom chegar ao Pão de Açúcar, nervoso por a encontrar, antecipando como reagiria às prendas que lhe levava, o tal arroz, água, chocolates, e saber que afinaria a voz, por norma mais grossa, num “Obrigada menino” que soaria verdadeiro.

Enquanto dormia, meti-me ao trabalho.

Tirei da mochila vários rolos de papel higiénico que roubei da Pires de Lima e dos cafés entre a Oficina e o Campo 24 de Agosto. Não podia sacá-los da oficina porque cada um roubava o seu e o dos outros. Os sabonetes também…”

In “Pão de Açúcar” de Afonso Reis Cabral.

As sessões presenciais estão de volta, sujeitas a confirmação prévia e às normais condições de segurança e higiene. Aplausos à nossa Biblioteca!

08 setembro 2020

3º Trimestre – América!

 

Os meses sucedem-se ritmados e o terceiro trimestre está a chegar ao fim. Dos três livros em agenda (Julho - Philip Roth / Casei com um Comunista, Agosto - Margaret Atwood / Semente de Bruxa e Setembro - John Steinbeck / Viagens com o Charley), foi este último que me deu mais prazer na leitura. Deixou-me a sonhar com a sua Rocinante e a possibilidade de ir um dia pela estrada fora, sem destino certo e a parar ao sabor do momento.

(As sessões presenciais continuam suspensas, mas os livros estão por aí, à espera de serem lidos…)

02 junho 2020

"O Tio Goriot" de Honoré de Balzac



Goriot, um pobre homem que, em função do seu tresloucado amor pelas filhas, tudo lhes dedica até aos últimos momentos de vida, sem nunca receber qualquer retribuição.

O ambiente de uma despretensiosa quase miserável pensão familiar, a Casa Vauquer, onde diversas personagens tudo fazem valer, para sobreviver na degenerada sociedade parisiense do século XIX.

27 maio 2020

Sessão de Maio, em modo virtual (Zoom) – 29 Maio-21h00



Caros Amigos Leitores

Neste mês de Maio, continuamos sem poder realizar uma sessão presencial, pelo que, mais uma vez, realizaremos a mesma via Zoom.

Contamos convosco para as habituais partilhas de leitura, desta vez com Flaubert e a sua Educação Sentimental.


25 maio 2020

PELLERIN, UM PINTOR EM "A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL"

A personagem de Pellerin como pintor medíocre e incoerente é uma das boas criações de Flaubert em A Educação Sentimental. Um grande romance vive também destas personagens secundárias que despertam o riso ou a piedade dos leitores e cujos episódios servem para retardar e complicar o desenvolvimento da acção principal.   
Apresentado no capítulo quarto da primeira parte como estudioso de «todas as obras de estética para descobrir a verdadeira teoria do Belo», a sua maneira de viver é descrita sumariamente da seguinte forma: «Pellerin deitava-se tarde, e era um frequentador assíduo de teatros. Era servido por uma velhota andrajosa, jantava numa tasca e vivia sem amante». A descrição é depois alargada a mais algumas considerações: «Os seus conhecimentos, adquiridos ao sabor do acaso, tornavam os seus paradoxos divertidos. O ódio contra o comum e o burguês extravasava-se em sarcasmos de um lirismo soberbo, e tinha pelos mestres uma tal religião que ela o elevava quase até eles».
É este Pellerin que no capítulo seguinte dá lições de pintura ao jovem Frédéric Moreau num momento em que o recém-chegado a Paris, para se aproximar do ofício de marchand de arte do marido de Marie Arnoux, é tomado pela ideia de se fazer pintor. No mesmo capítulo, em casa do seu pupilo, tem uma discussão sobre estética com o socialista Sénécal. Para o revolucionário, a única arte válida é a que visa a «moralização das massas», assente na escolha de temas que evidenciem a exploração e a miséria do povo trabalhador, enquanto Pellerin está mais do lado da autonomia da arte, defendendo não haver temas obrigatórios em função de objectivos de ordem social ou política.
O pintor está ainda associado à factura de um retrato de Rosanette, que ele pensa poder vir a ser a sua obra-prima, de que Frédéric Moreau, futuro amante da retratada, é o encomendador.
Muito curioso, por revelar a versatilidade criadora, um quadro seu adquirido pelo capitalista Dambreuse representava a República ou a Civilização, sob a figura de Jesus Cristo, conduzindo uma locomotiva através de uma selva virgem. 

18 maio 2020

GUSTAVE FLAUBERT, "A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL" - Leitura do mês -


No final da segunda parte do romance, um bilhete enviado por Deslauriers a Frédéric Moreau diz o seguinte:
«Meu velho,
A pêra está madura. Conforme a tua promessa, contamos contigo. Reunimo-nos  amanhã cedinho, na praça do Panthéon. Entra no café Soufflot. Tenho de te falar antes da manifestação.»
Estava-se em vésperas dos acontecimentos revolucionários de 1848 e esta pêra não era outra que Luís Filipe I, o rei burguês, cuja cabeça os caricaturistas desenhavam em forma de pêra, como na conhecida gravura de Honoré Daumier (1808-1879), O Rei de França como Gargântua.
No traço do artista – que lhe valeu a prisão – o rei é representado segundo a figura do insaciável Gargântua, personagem de Rabelais, recebendo continuamente o alimento que os súbditos são forçados a entregar-lhe e saindo-lhe sob o cadeira do trono, como dejectos, as suas leis e disposições antipopulares.
A acção de A Educação Sentimental decorre de 1840 – em pleno período da chamada monarquia de Julho – até ao golpe de Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão, em 1851.
Sobre o golpe de que nasceu o II Império escreveria Marx as frases célebres de O 18 do Brumário de Louis Bonaparte : «Hegel faz notar algures, que todos os grandes acontecimentos e personagens históricos ocorrem, por assim dizer, duas vezes. Esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.»

08 maio 2020

A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL, capítulo primeiro

L´éducation sentimentale, série de televisão de 1973, com Françoise Fabian (Marie Arnoux) e Jean-Pierre Léaud (Fréderic Moreau). Episódio da viagem de barco entre Paris (Quai Saint-Bernard) e Montereau correspondente ao capítulo primeiro do romance: 
«Foi como uma aparição.
Estava sentada, no meio do banco, completamente só ou, pelo menos, ele não se apercebeu de mais ninguém no deslumbramento que os seus olhos lhe transmitiram. (...)
Tinha um largo chapéu de palha, com fitas cor-de-rosa que, por detrás dela palpitavam ao vento. Os bandós negros, que lhe contornavam as pontas das longas sobrancelhas, estavam muito descaídos e pareciam comprimir amorosamente o oval do rosto.»
E assim se desencadeou uma atracção de grandes consequências no desenvolvimento da narrativa. 

02 maio 2020

"A Educação Sentimental" de Gustave Flaubert - 29 de Maio



“…Com excepção de alguns burgueses, na primeira classe, eram operários e lojistas com as mulheres e os filhos. Como o costume de então era vestir-se sordidamente em viagem, quase todos usavam velhas barretinas gregas, ou chapéus desbotados, fraques pretos puídos, lustrosos de roçar nas escrivaninhas, ou então sobrecasacas cujos botões forrados se esgarçavam, de tanto terem servido nas lojas; aqui e ali, um colete posto aos ombros como xaile deixava entrever uma camisa de algodão, maculada de café; alfinetes dourados prendiam gravatas esfarrapadas; tiras de pano prendiam aos pés pantufas de feltro; dois ou três vadios, ostentando pingalins com alças de couro, lançavam olhares de esguelha, e chefes de família esbugalhavam os olhos, fazendo perguntas. Conversavam em pé ou sentados nas bagagens; outros dormiam pelos cantos; alguns comiam. Cascas de nozes e de peras, pontas de charuto, restos de chouriço, trazido dentro de papéis, sujavam o tombadilho; três marceneiros, de blusões, estacionavam diante da cantina; um tocador de harpa, esfarrapado, descansava apoiado no seu instrumento; de tempos em tempos, ouvia-se o ruído do carvão de pedra na fornalha, uma voz que se elevava, uma risada; — e o capitão, na ponte, ia sem parar de uma roda à outra. Para voltar ao seu lugar, Frédéric abriu a cancela da primeira classe, passando por entre dois caçadores e os seus cães. 
Foi como uma aparição!

Ela estava sentada, sozinha, no meio do banco…”

In A Educação Sentimental de Gustave  Flaubert

01 maio 2020

MAIS MONTANHA MÁGICA

Fazer o bom uso das doenças. O estado de saúde confere uma sensação de imortalidade, uma obsessão por divertimentos e realizações que não propicia a reflexão e o aperfeiçoamento individual. A doença pode ser uma oportunidade de melhoramento, por mais contraditório que isto possa parecer. Em meados do século XVII, Blaise Pascal escreveu um texto sobre o tema em forma de oração a Deus.
No Hans Castorp d´ A Montanha Mágica está bem presente o pascaliano princípio do «bon usage des maladies». É sob a doença que o jovem engenheiro vive o amor e sente vontade de estudar biologia, ciências médicas e botânica. É neste estado aparentemente limitador que lhe vem a necessidade de iniciação ao pensamento filosófico, procurando formar as suas ideias a partir das discussões presenciadas entre o humanista Ludovico Settembrini e o escolástico Leo Naphta. A comunhão com a natureza, ou seja, com a vida, é outra inclinação que lhe é dada pela sua estadia no sanatório Berghof.
Acabei de ler o subcapítulo “Neve” do sexto capítulo do romance. Hans Castorp aprende a esquiar para melhor conhecer os espaços maravilhosos da montanha. Fá-lo às escondidas do médico-chefe, o conselheiro Behrens, que nunca lhe teria dado autorização para o exercício de desportos físicos. Ele está diagnosticado com um «foco húmido» no pulmão, uma doença grave de evolução imprevisível.
Este subcapítulo é dos mais belos que o romance tem. Verão as colegas leitoras quando lá chegarem.

27 abril 2020

A MONTANHA MÁGICA, novo apontamento

Inácio de Loyola (1491-1556) e Frederico II da Prússia (1712-1786)

Em pleno sexto capítulo de A Montanha Mágica, o leitor é surpreendido com o aparecimento de uma nova personagem: Leo Naphta, jesuíta de origem judia (tal e qual!), filósofo escolástico e grande defensor da essência do espírito contra a carne em trânsito para a putrefacção. Embora fora do sanatório, Leo Naphta encontrava-se em Davos Dorf a tratar-se da tuberculose, deixando em suspenso a sua acção em prol da edificação da Cidade de Deus.
Hans Castorp, o protagonista, ensaia então em pensamento uma comparação entre o militarismo prussiano (a que o seu primo Joachim se entregara, abandonando o sanatório para poder seguir a carreira das armas) e a pragmática dos inacianos. Passagem soberba de pensamento, daquelas que só se encontram nas grandes obras. «Não seria o seminário Stella Matutina [dos Jesuítas, onde Leo Naphta estudara] uma autêntica escola de cadetes em que os pupilos eram distribuídos por "divisões" e exortados a cumprirem honradamente uma disciplina ao mesmo tempo militar e espiritual, constituindo, por isso, uma espécie de combinação de "colarinho engomado" com a "golilha espanhola"? A ideia de honra e de distinção por mérito, tão importantes na profissão de Joachim, não se evidenciavam também de modo notório, como pensava Hans Castorp, na vocação que Naphta tivera que abandonar devido à doença?» E mais adiante: «A doutrina e os preceitos estabelecidos pelo fundador e primeiro general, o espanhol Loyola, levavam a crer que a sua acção era de maior alcance e que prestavam serviços mais meritórios do que aquelas pessoas que agiam apenas em função da razão lógica.» Considerando ainda: «É que combater o inimigo, agere contra, atacar, portanto, significava mais , e era mais honroso, do que defender-se apenas (resistere). Debilitar e desbaratar o inimigo, dizia o regulamento do serviço de campanha, e mais uma vez o seu autor, o espanhol Loyola, estava em perfeita sintonia com o capitan general de Joachim, Frederico da Prússia, e a sua palavra de ordem: " Ao ataque! Ao ataque!", "Destroçar o inimigo!", "Attaquez donc toujours!" Imagina-se o que destas reflexões poderia dizer o humanista e pacifista Ludovico Settembrini, personagem amiga do confronto intelectual, mesmo com os que, como no caso do jesuíta Naphta, lhe eram totalmente opostos em matéria de pensamento.

24 abril 2020

AINDA O CONDE D' ABRANHOS E A NOSSA HISTÓRIA


A páginas tantas de O Conde d' Abranhos: "Hoje, destruído o regimen absoluto, temos a feliz certeza de que a Carta liberal é justa, é sábia, é útil, é sã. Que necessidade há de a examinar, criticar, comparar, pôr em dúvida?...".
A Carta que vigorava na época do Conde e também do Eça, era a 2ª Constituição portuguesa, de 1826, com o nome de Carta Constitucional, conhecida como A Carta. Refletia a reação conservadora contra a Constituição liberal de 1822. Outorgada por D.Pedro I do Brasil, (e IV de Portugal), após a morte de D.João VI, seguia o modelo francês de 1814 e o exemplo de outros países, como Alemanha, Polónia, e o próprio Brasil, cuja Constituição datava de 1824, outorgada pelo mesmo D. Pedro.
Esta Carta tinha introduzido várias medidas anti-democráticas e a Câmara dos Pares, que fazia pendant nas Cortes com a Câmara dos Deputados, era composta por elementos da nobreza e do clero escolhidos pelo rei (por esta altura, D. Luís), "vitalícia e hereditariamente", incluindo o príncipe real e os infantes. O poder moderador pertencia ao rei, que podia nomear os pares, convocar Cortes e dissolver a Câmara dos Deputados, para além de nomear e demitir o governo, vetar as leis, etc. Também lhe pertencia o poder executivo em conjunto com o governo, pertencendo o poder judicial aos juízes e jurados. Um Conselho de Estado, igualmente de nomeação régia, assistia o rei como cabeça do poder moderador.
Com esta disposição, "quase toda a alta nobreza e a totalidade da hierarquia ficavam com lugar permanente no novo Parlamento liberal". A Carta de 1826 agradava às tradicionais classes privilegiadas, para além de incluir, na Câmara dos Deputados os grandes proprietários e burgueses.
É então esta Carta que vai perdurar um total de 72 anos; numa 1ª fase, de 1926 a 1928 e depois, de 1834 até 5 de outubro de 1910, "como texto fundamental do Reino".

MARQUES, A.H.O. 1998. História de Portugal. Vol III. Lisboa: Editorial Presença

Conde d’Abranhos, sessão mensal em modo videoconferência!



Hoje é dia da nossa sessão mensal. Não sendo possível reunir presencialmente, vamos fazê-lo de forma virtual. Todos os membros da Comunidade receberam o convite para participação, por isso contamos com a presença daqueles que tiverem disponibilidade.

Em discussão e análise, a vida de “Alípio Severo Abranhos, Conde d'Abranhos…varão eminente, Orador, Publicista, Estadista, Legislador e Filósofo”, tal como o descreve o seu eloquente secretário Z. Zagalo.

Eça e a sua crítica política feroz, no seu melhor.

22 abril 2020

O CONDE D´ABRANHOS (4)

Lendo O Conde d´Abranhos, podemos identificar o período do Liberalismo em que se insere a carreira política do protagonista, questionando-nos se sob os nomes fictícios de partidos, ministérios e agentes políticos ( Reformadores, Nacionais, ministério Cardoso Torres, o «velho general despeitado» da Revolta de 20 de Junho, etc.) não estarão nomes reais, historicamente conhecidos, de um tempo concreto e preciso. 
O Conde d´Abranhos foi escrito de um fôlego em 1879, durante uma estadia de Eça em Dinan, na Bretanha, embora a publicação só postumamente ocorresse, em 1925. À época da sua escrita, por razões que se adivinham, o editor terá chegado a propor que o livro saísse sem indicação da autoria.
A carreira política de Alípio Abranhos desenrola-se no 3º período do Liberalismo (1851 a 1890), conhecido pelo nome de Regeneração. Trata-se de um período caracterizado por um conjunto de melhorias materiais – rede viária e ferroviária, faróis, portos, telégrafo, fornecimento de água e iluminação – com expansão do sector agrícola mas fraca progressão da indústria. Este programa de desenvolvimento foi denominado Fontismo, devido a Fontes Pereira de Melo, seu inspirador e principal impulsionador.
No plano político destacavam-se os partidos Regenerador, Reformista e Histórico, tendo estes últimos dado origem, em 1876, ao Partido Progressista. As forças partidárias iam alternando no poder, tal como os Reformadores e os Nacionais do romance, sem que entre elas houvesse diferenças significativas, tanto ideológicas  como de prática política. Era o rotativismo.
Desconheço a eventual correspondência histórica do ministério Cardoso Torres, mas tendo a normalidade constitucional da Regeneração sido perturbada por golpes de estado – a revolução da Janeirinha em 1867-1868 e o golpe do Marechal Saldanha em 1870 – o livro de Eça faz eco de tais acontecimentos com o pronunciamento do «velho general despeitado», uma provável representação do marechal Saldanha, chefe militar prestigiado e inveterado golpista.
De notar que o período da Regeneração corresponde no plano cultural ao do segundo Romantismo, execrado e combatido pela escola realista, sendo notórias, neste e noutros escritos de Eça, as sátiras em torno de poemas ultra-românticos de João de Lemos, Soares de Passos e Bulhão Pato.
E assim, temos um romance que ficou na gaveta por mais de quarenta e cinco anos, ultrapassado em data de publicação por obras menos acutilantes do autor, um romance inacabado, sem revisão, o que lhe confere essa característica de peça em bruto, sem rodeios, num registo de quem fala com “o coração na boca” – fundamentalmente pelo discurso laudatório do narrador-biógrafo, convencido de que está a pôr nos píncaros o seu mentor e afinal só lhe descobre as fraquezas, a mediocridade intelectual e as misérias do seu carreirismo político sem honra nem princípios.

[Fontes: www.feq.pt, sítio da Fundação Eça de Queiroz; JOÃO MEDINA, História de Portugal Contemporâneo (político e institucional), Universidade Aberta, 1994.]

16 abril 2020

Luís Sepúlveda (1949-2020) - O fim de um voo...

 
(Foto Bruno Simão)
(Foto dos meus livros)

“Capítulo 4 - O fim de um voo

O gato grande, preto e gordo estava a apanhar sol na varanda, ronronando e meditando acerca de como se estava bem ali, recebendo os cálidos raios de barriga para cima, com as quatro patas muito encolhidas e o rabo estendido.
No preciso momento em que rodava preguiçosamente o corpo para que o sol lhe aquecesse o lombo ouviu o zumbido provocado por um objeto voador que não foi capaz de identificar e que se aproximava a grande velocidade. Atento, deu um salto, pôs-se de pé nas quatro patas e mal conseguiu atirar-se para um lado para se esquivar à gaivota que caiu na varanda.
Era uma ave muito suja. Tinha todo o corpo impregnado de uma substância escura e malcheirosa.
Zorbas aproximou-se e a gaivota tentou pôr-se de pé arrastando as asas.
-Não foi uma aterragem muito elegante - miou.
-Desculpa. Não pude evitar -reconheceu a gaivota.
-Olha lá, tens um aspeto desgraçado. Que é isso que tens no corpo? E que mal que cheiras! -miou Zorbas.
-Fui apanhada por uma maré negra. A peste negra. A maldição dos mares. Vou morrer - grasnou a gaivota num queixume.
-Morrer? Não digas isso. Estás cansada e suja. Só isso. Porque é que não voas até ao jardim zoológico? Não é longe daqui e lá há veterinários que te poderão ajudar -miou Zorbas.
-Não posso. Foi o meu voo final - grasnou a gaivota numa voz quase inaudível, e fechou os olhos.
-Não morras! Descansa um pouco e verás que recuperas. Tens fome? Trago -te um pouco da minha comida, mas não morras - pediu Zorbas, aproximando-se da desfalecida gaivota.
Vencendo a repugnância, o gato lambeu-lhe a cabeça. Aquela substância que a cobria, além do mais, sabia horrivelmente. Ao passar-lhe a língua pelo pescoço notou que a respiração da ave se tornava cada vez mais fraca.
-Olha, amiga, quero ajudar-te, mas não sei como. Procura descansar enquanto eu vou pedir conselho sobre o que se deve fazer com uma gaivota doente - miou Zorbas, preparando-se para trepar ao telhado.
Ia a afastar-se na direção do castanheiro quando ouviu a gaivota a chamá-lo.
-Queres que te deixe um pouco da minha comida? - sugeriu ele algo aliviado.
-Vou pôr um ovo. Com as últimas forças que me restam vou pôr um ovo. Amigo gato, vê-se que és um animal bom e de nobres sentimentos. Por isso, vou pedir -te que me faças três promessas. Fazes? – grasnou, sacudindo desajeitadamente as patas numa tentativa falhada de se pôr de pé.
Zorbas pensou que a pobre gaivota estava a delirar e que com um pássaro em estado tão lastimoso ninguém podia deixar de ser generoso.
-Prometo-te o que quiseres. Mas agora descansa – miou ele compassivo.
-Não tenho tempo para descansar. Promete-me que não comes o ovo - grasnou ela abrindo os olhos.
-Prometo que não te como o ovo - repetiu Zorbas.
-Promete-me que cuidas dele até que nasça a gaivotinha.
-Prometo que cuido do ovo até nascer a gaivotinha.
-Promete-me que a ensinas a voar - grasnou ela fitando o gato nos olhos.
Então Zorbas achou que aquela infeliz gaivota não só estava a delirar, como estava completamente louca.
-Prometo ensiná-la a voar. E agora descansa, que vou em busca de auxílio – miou Zorbas trepando de um salto para o telhado.
Kengah olhou para o céu, agradeceu a todos os bons ventos que a haviam acompanhado e, justamente ao exalar o último suspiro, um pequeno ovo branco com pintinhas azuis rolou junto do seu corpo impregnado de petróleo….”

In “História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar”, de Luís Sepúlveda


15 abril 2020

O CONDE D´ABRANHOS (3)

Nos romances de Eça há recorrências notáveis. Uma delas é o aparecimento de personagens de meninos-prodígios a recitarem poesia. Deveis estar lembrados do Cap. III d´Os Maias, o «tristonho e molengão» Eusebiozinho a mostrar os seus dotes com o poema “A Lua de Londres” do ultra-romântico João de Lemos.
O Conde de Abranhos, a menina Julinha recita o mesmo poema em casa do bestial desembargador Amado, sendo citados quatro versos da primeira estrofe e outros tantos da segunda. Antes, a prodigiosa menina aventurara-se por poesia mais funesta, nada mais, nada menos que “O Noivado do Sepulcro”, de Soares de Passos:
«Vai alta a Lua na mansão da morte,
Já meia-noite com vagar soou…»
É claro que o bom do Eça não refere os títulos dos poemas nem os nomes dos seus autores. Nem tal era preciso, tão conhecidos eram eles dos salões e saraus chiques da época. Os poetas ultra-românticos, os citados e também Bulhão Pato, foram bobos da festa nas narrativas queirosianas. Os portugueses e ainda Lamartine, o criador de Elvira, embora este estivesse uns degraus acima dos românticos serôdios cá do burgo. Cá da «choldra», diria o Eça.

14 abril 2020

O CONDE D´ABRANHOS (2)

Escrevendo em louvor de Alípio Abranhos, Z. Zagalo tem páginas de utilidade e rigorosa actualidade. 
Hoje retomei a leitura naquela parte do livro em que o «varão eminente» está a praticar as técnicas forenses no escritório do famoso jurista Dr. Vaz Correia. Na sua douta explanação, o biógrafo traz à colação a histórica revolta da Maria da Fonte, iniciada no Minho em Março-Abril de 1846 e depois alargada, num crescendo da crise social, a outras regiões do país.
Isto deu-me a oportunidade de ir rever os manuais da universidade, nomeadamente a História de Portugal Contemporâneo – Político e Institucional, de João Medina, na edição da Universidade Aberta.
É bom sinal que um livro de ficção nos leve a descobrir ou relembrar certos temas da nossa história. A boa ficção é uma leitura séria e na maioria dos casos altamente científica.
A revolta da Maria da Fonte fez-se contra o governo ditatorial de António Bernardo de Costa Cabral (1803-1889), um governo que, apesar de ter saído de um golpe de Estado e restabelecido um regime constitucional conservador (a Carta), empreendeu medidas progressistas como a proibição dos enterros nas igrejas e recintos anexos. A reacção popular de cariz religioso a esta medida sanitária (via-se nela o afastamento dos defuntos da asa protectora da Igreja) foi seguida de grandes desacatos com assaltos de camponeses às sedes da administração civil, a arquivos da Fazenda e quartéis, tendo os revoltosos tomado as cidades de Braga e Guimarães.
Diz João Medina: «A Maria da Fonte foi uma reacção sobretudo provinciana, camponesa e agrária contra as reformas em geral do Liberalismo (legislações de Mouzinho, Joaquim A. de Aguiar e Silva Carvalho) e contra alguns aspectos mais modernos da política de fomento material empreendida pela ditadura dos Cabrais e, nesta medida, contra a própria modernização económico-social iniciada desde 1842.»
Claro que esta explosão social e a coligação negativa – como hoje se diz – que se estabeleceu (cartistas anticabralistas, setembristas e até miguelistas) acabou por determinar a destituição de Costa Cabral pela rainha D. Maria II.
Mas voltemos a Z. Zagalo e a Alípio Abranhos (não sei se repararam, mas é como ir de AA a ZZ, um vasto campo, o que talvez não seja inocente…). Era ideia do ilustre pensador político que o regime constitucional democrático deveria prevalecer sobre o autoritário, que essa seria a melhor forma de levar as ovelhas ao redil. Demos a palavra a Z. Zagalo: «O Conde d´Abranhos, com a sua alta intuição, sentiu que se estava preparando uma nova política, que, condizendo com o seu temperamento, seria o elemento natural em que a sua fortuna medraria como num terreno propício. Ele bem sabia que o governo nada perdia do seu poder discricionário – mas que apenas o disfarçava. Em vez de bater uma forte patada no país, clamando com força: – Para aqui! Eu quero! – os governos democráticos conseguem tudo, com mais segurança própria e toda a admiração da plebe, curvando a espinha e dizendo com doçura: – Por aqui, se fazem favor! Acreditem que é o bom caminho!»
Não sei o que estão os nossos leitores a pensar, mas, se calhar, estão a pensar o mesmo que eu.

11 abril 2020

10 abril 2020

Em formato TV


(imagem da série)


Através do nosso leitor José Moreira, chegou-nos a informação desta série de ficção da RTP, baseada na obra de Eça de Queirós, que estamos a ler no mês de Abril.

Se quiserem acompanhar, neste formato, o percurso político de Alípio Abranhos, fica o link para todos os episódios:


07 abril 2020

O CONDE D´ABRANHOS (1)


Falemos d’ O Conde d´Abranhos. Para começar, a carta-prefácio de Z. Zagalo, ex-secretário do «varão eminente» e seu humílimo biógrafo.
Esta carta é assim como um programa da narrativa a apresentar. O leitor percebe logo, e isso não lhe diminui o interesse, com que tipo de discurso se vai deparar. Um discurso laudatório sobre uma personagem pautada pelos valores fundamentais que alegadamente forjaram a grandeza da Pátria.
Portanto, esperamos ver no Conde de Abranhos o seu «ser moral», a sua «filosofia tão profundamente religiosa» e a «vasta ciência política» adquirida, além da profunda devoção à família – nomeadamente à segunda esposa, Dona Catarina, «um bálsamo» para a vida – e o seu reconhecimento aos servidores estrénuos e dedicados como este impagável Z. Zagalo metido a biógrafo da grande figura pública.
Sendo assim, vamos lá à leitura!

01 abril 2020

Abril é mês de "O Conde d'Abranhos" (mesmo sem sessão presencial)




A abrir:

“ALÍPIO SEVERO ABRANHOS nasceu no ano de 1826, em Penafiel, no dia de Natal. A Providência, por um símbolo subtil e engenhoso, fez nascer no dia sagrado em que nasceu Jesus de Nazaré, aquele que em Portugal devia ser o mais forte pilar e o procurador mais eloquente da Igreja, dos seus interesses e do seu reino.

Muitas vezes o Conde se comprazia em contar que, nessa noite de 24 de Dezembro de 1826, Inverno que ficou na história pelas grandes neves que caíram, seus pais – segundo a tradição venerada na família – tinham armado um presépio, como era costume nesses tempos em que a boa fé portuguesa amava a piedosa devoção dos altares íntimos. Ao centro do presépio, florido de muita verdura, entre os animais da narração evangélica, o Menino Jesus sorria, nos braços de uma Virgem, obra delicadamente trabalhada por Antão Serrano, o grande santeiro de Amarante. Em torno, ardiam as velas de cera; na cozinha, cantavam nas frigideiras os rojões da ceia; o lume de lenha húmida estalava jovialmente, e fora, na neve que caía, os sinos repicavam para a missa do Galo – quando a mãe do Conde, subitamente
Sentiu o tenro ser...
como diz o nosso grande lírico no seu poema, A Mãe…"

in “O Conde d’Abranhos” de Eça de Queiroz

Em Abril, continuaremos certamente sem nos podermos encontrar. Que isso não nos impeça, de ler o livro agendado para este mês!