31 dezembro 2011

MEMÓRIAS DO ANO

António Lobo Antunes. Fotografia de Pedro Loureiro

O livro de prosas enviesadas, relutantes, com um vago sabor a hortelã-pimenta e a ácaros fritos em óleo de palma, chega-nos pela mão duma leitora que de tanto lidar com números, experiências aleatórias, variáveis discretas e contínuas, funções de distribuição normais e hipergeométricas, resolve vir desassossegar um círculo mastigante de tias de Cascais, de senhores idosos suspirantes por damas de quarenta anos, de jovens e menos jovens um bocado à rasca, desses que se passeiam pela Avenida com todo o peso da filosofia ocidental às costas pedindo a demissão de governantes socráticos, também dos platónicos e dos aristotélicos.
– Nem com as tuas cartas fiquei, meu amor, voaram-me da gaveta como rolas enfáticas defenestradas duma gaiola a que se soltaram as barras de arame decrépito. Conservo apenas algumas fotografias metidas em álbuns castanhos de lombadas gravadas a falso ouro: uma em que te vejo na piscina de Malange, o volume dos teus seios a intimidar o frágil tecido sintético do maillot; outra na marginal de Luanda, lambendo um cone de gelado de manga, o carocha estacionado na berma e a menina brincando sob quarenta graus de desvario tropical. Não sei se te perdi ou se fui eu que me perdi.
Quem trouxe o livro para círculo tão selecto não imaginou os olhos doridos de quem está habituado a chamar as perspectivas e as linhas de fuga pelos seus nomes próprios, os olhos derramados sobre os paradoxos da escrita, qual parábola de Zenão de Eleia, qual discurso cavaquista numa qualquer cerimónia de tomada de posse, como se visse voar para fora do quadro os namorados flutuantes do aniversário de Chagall ou descobrisse um nu deitado de Modigliani risivelmente convertido em peça de arte efémera; nem imaginou o poeta que não leu o livro, o poeta que aliás nunca lê os livros (Ler é maçada, estudar é nada. Grande é a poesia, a bondade e as danças… Mas o melhor de tudo são as crianças. O mais que isto é Jesus Cristo, que não sabia nada de finanças nem consta que tivesse biblioteca…), o poeta ouvindo como dísticos ou haicai japoneses as sombras breves das demoradas impressões dos leitores; e muito menos a devoção bramânica, obcecada e lírica de quem agarra as palavras como quem cruza as pernas e se entrega aos iogas libertadores da vida dispersa de todos os dias; tampouco imaginou o atrevimento do escrevente aguado, que escreve mais do que pensa, e que às vezes até escreve aquilo que não pensa, o que quer dizer que erra mais do que acerta, verdade infeliz e crua como um ovo estrelado com a gema derramada no óleo da frigideira.
– Não me sobrou uma peça de roupa tua, meu amor. Teria desejado um sutiã, uma liga de meia, um casto lenço de cabeça, desses a que também chamam bioco e que te fazia o rosto tão bonito, ou os juvenis soquetes que usavas naquele dia em que nos beijámos sob uma acácia florida, depois desfeita à morteirada, em 1975, por um pelotão das fapla empanturrado de funje e cuca. Que afagador passa hoje a mão pela linha terna do teu seio? Que jóquei feliz te agarra as crinas de égua domada, disposta aos mais incríveis saltos nas barreiras do amor? Minha querida jóia, minha querida mulher, GTS, meu amor perdido, porque te perdi?
Obrigado, leitora das funções de distribuição normais e hipergeométricas, obrigado ó Lobo, obrigado ó Antunes. Só é lobo quem lhe veste a pele, só é Nunes quem não pode ser Antunes, obrigado pelo livro e pelas leituras possíveis, obrigado pelo chá, obrigado pelos bolinhos.
Memória da guerra colonial, dizem eles. Mais, muito mais!

(Texto lido na sessão de Março - Memória de Elefante de António Lobo Antunes)

29 dezembro 2011



Relato [...]: 4ª e última Jornada


Correndo o risco quase impensável de se atrasar para a ceia em casa do sobrinho, Mr Scrooge ainda se demorou um pouco a explicar o favor que pretendia.
- Amigos, o tempo urge: quando os Sinos de Ano Novo baterem as onze badaladas, serão visitados pelo Espírito Poético, e é nessa altura que há-de ser forjado o novo desenlace da minha história, mais a contento da minha maneira de ser e para que eu possa ter acesso à tranquilidade eterna. Basta que se mantenham atentos e cumpram tudo o que o Espírito vos inspirar. E agradecendo, sumiu-se no ar, perante a estupefacção geral.
Seguiu-se um grande rebuliço, pois se aproximava a hora esperada: Mrs Cratchit procurava as velas mágicas de Natal no fundo de todas as gavetas, com Bob Cratchit atrás, a refilar contra a falta de ordem naquela casa; Merry-Jo trauteava um fado que nunca tinha ouvido; Mc Charles ensaiava umas notas um tanto esganiçadas na sua gaita-de-foles, sob os protestos da mulher; as três amigas, com a tesoura de recortes de Carlile, iam cortando em todos os personagens dos contos de C.Dickens, e por pouco não estragavam irremediavelmente as histórias.
Quanto ao poeta Laurence, nem se fala: com a atrapalhação, tinha-se perdido por completo, e folheava desesperadamente os livros, que já não reconhecia, sem encontrar nenhum dos poemas anteriormente escolhidos. Parecia bruxedo!
Foi então que, vindas não se sabe de onde, as notas do carrilhão começaram a bater as onze badaladas, as luzes apagaram-se, as velas acenderam-se por si mesmas, os livros de poesia do poeta ergueram-se sozinhos no ar batendo as folhas, bem como todos os poemas avulsos escolhidos e o poema proposto por M. Dikens; e, perante o pasmo generalizado, cada livro ou folha com o poema mais adequado, foi poisar nas mãos de quem o devia ler! O Espírito Poético tinha chegado. A partir daí tudo correu lindamente: as vozes, mesmo as mais fanhosas, declamaram como se fossem de anjos e, no final, Mc Charles fez soar de forma divinal a sua gaita-de-foles.

Quando a sessão acabou o Espírito Poético ainda pairou por ali algum tempo, mas ninguém percebeu de que forma teriam contribuído para a salvação de Mr Scrooge.
Só no Natal seguinte, quando os temas da Quadra voltaram a ser notícia é que os nossos amigos da sessão poética compreenderam o que tinha acontecido: havia agora uma nova versão do Cântico de Natal, a partir de um manuscrito original, descoberto em Chatham, no Condado de Kent. O final desta versão era um pouco diferente do anterior: o que ressaltava era sobretudo um maior comedimento na mudança de atitude de Scrooge; alguns críticos até adiantavam que correspondia a um maior realismo, demonstrando que a redenção, tal como a utopia romântica a concebe, não existe. Enfim, não cabe aqui descrever a tremenda conjuntura polémica que se gerou à volta do novo Conto, envolvendo, de críticos literários a historiadores da revolução industrial e teóricos neo-marxistas.
A verdade é que, entre outros aspectos, se encontrava no texto uma descrição da ceia em casa de Fred, o sobrinho de Mr Scrooge, com a presença de Meg e Richard, provenientes do conto The Chimes. Sabendo que os dois queriam casar, mas não tinham meios suficientes, Fred, com a sua bondade natural, tinha resolvido ajudá-los e convencer o tio a participar. No entanto, depois de alguma discussão e cedências por parte do prestamista, este tinha acedido, não a dar, mas a emprestar-lhes o dinheiro para a compra da casa e... imagine-se, para os electrodomésticos - anacronismo este que lançou a maior confusão na comunidade científica.


(Finished)

28 dezembro 2011

Relato [...]: 3ª Jornada


- Pois bem! - Suspirou Scrooge - lamento vir assim interferir na vossa noite de Natal, mas a verdade é que depois de muito ter reclamado junto de C. Dickens - já explico porquê -, soube que ele tinha enfim decidido convocar um Espírito mais conciliador e racional, o Espírito Poético, precisamente aquele que hoje ficou de aparecer na vossa sessão, assim que se dispuserem a recebê-lo, conforme me constou no cibercafé do Espaço Sideral.
- Sim, ouvimos até dizer que ele se predispunha a rescrever a sua história, disse Miss Carlile, a filha do casal, que entretanto já se tinha recomposto do espanto, e se sentia, diga-se em abono da verdade, um tanto atrapalhada, pois ainda não tinha acabado de ler o conto.
- Felizmente, C. Dickens criou-me sincero e frontal, e estas são qualidades que não cheguei a perder, apesar de tudo o que ele me fez passar e das atitudes radicais para que por fim me empurrou...
Aqui, já um tanto agastado, pois apreciava sobremaneira o autor, interrompeu-o o dono da casa:
- Mas, desculpe, tudo o que aconteceu depois das visitas dos Espíritos pareceu ser resultado exclusivo de decisões suas. Aliás, do que sei, por muitas gerações e actualmente, a sua mudança de atitude tem sido um manancial de lições de humanidade, de generosidade... E a inspiração...
- Ora aí está, a inspiração! - Scrooge não resistiu a interromper - e faz ideia do que eu, humilde prestamista de Londres até 1853, tenho sofrido, por causa dos protestos?
Entretanto, o poeta tinha emergido de debaixo da mesa e, mais à vontade, expressou a perplexidade estampada nas expressões dos presentes:
- Que protestos?
Quando o notável visitante se preparava para debitar as suas explicações, tocou a campainha da porta... Eram o casal Mc Charles, Merry-Jo, Etel Light e, logo a seguir, apareceu Airlet, muito afobada, porque se tinha perdido às voltas na Rotunda do Cemitério...
Passada uma primeira fase de natural estranheza em vista do inesperado conviva, o qual era conhecido de jingeira, quer dizer, do Cântico de Natal, todos se dispuseram ao reatar da história entretanto interrompida.
- Encurtanto então razões, como dizia, há mais de um século que sofro as afrontas dos injustos protestos do patronato, porque viram no meu gesto de generosidade compulsiva em relação ao vosso antepassado, meu amanuense, a origem de todas as cedências à classe operária: vejam-se os aumentos de salários, os bodos, os feriados, logo seguidos da semana-inglesa, do fim-de-semana, das férias pagas, enfim... uma torrente de regalias que a mesma classe dos trabalhadores nunca achava suficientes e, também para os sindicatos e associações de classe, nunca deixei de ser o mau da fita...
Scrooge estava a par dos problemas actuais, porque realmente lhe sobrava tempo para ver todos os canais de notícias do mundo; por pouco não estalava uma discussão brutal com Mr Cratchit, aficcionado do tema da política, a propósito da crise do Euro.
Foi então que Ebenezer Scrooge, até aí distraidíssimo com a conversa, reparou nas horas, se sobressaltou e, desculpando-se por ter de se ausentar sem participar na famosa sessão poética, explicou que não podia faltar à ceia de Natal na casa do seu sobrinho Fred.
Adiantou ainda que aquele tinha convidado, para a festa de Natal, um casal pobre que ele achava merecer ajuda... E Scrooge tremia só de pensar no montante da ajuda... Ainda por cima não os conhecia, pois vinham de outra estória... Tinha também um grande favor a pedir, antes de abalar...


(Tenham paciência, já não falta tudo)

27 dezembro 2011

Relato que se faz e apresenta da sessão que teve lugar poético em casa dos Cratchit, na noite de Natal do Ano da Graça de 2011: 2ª jornada


Na verdade, a campainha tocava de uma forma diferente, inaudita, como se fossem os sinos de um carrilhão ao longe, entoando jingle bells, jingle bells... Bob Cratchit franziu o sobrolho e perguntou à mulher:
- Estamos à espera de alguém tão cedo? A esta hora os convidados do Natal Poético ainda estão a desenvencilhar-se das espinhas do bacalhau... Quem será?
- Bem, não sei, o melhor é ir ver...
- Quem é? Perguntou Mrs Cratchit, depois de, confiadamente, ter accionado o trinco.
Ninguém respondia, mas uma estranha figura deslizou, sim, deslizar é o termo, através do portão entreaberto, e aproximou-se da porta, sendo dificilmente reconhecível à luz fraca do exterior.
Mrs Cratchit não é de se assustar, mas o caso estava a tornar-se, no mínimo, estranho.
Foi então que ela reprimiu um grito: era Mr Scrooge, só podia ser! Eram os chinelos mal enfiados nos pés, uma indumentária que combinava casaca e pijama, mas, sobretudo, o inconfundível barrete de dormir com a borla caída às três pancadas sobre o nariz adunco, que o denunciavam.
Se de fantasma ou espectro se tratava, tinha um aspecto bastante sólido e real; estava bem conservado, pensou Mrs Cratchit.
- Mas, senhor, o que faz aqui, a estas horas, tão deslocado do seu tempo e da sua cidade? Perdeu-se nos Circuitos Eternos? O que procura?
- Minha cara senhora, mil perdões pelo incómodo: esta não é por acaso a casa de Bob Cratchit, o meu empregado?
- Cratchit, sim, é o apelido de família... Mas entre, que está frio aí fora, e o senhor não está agasalhado – ainda apanha uma gripe!
Enquanto lhe dava passagem e indicava o caminho para a sala, onde o lume crepitava na lareira, ia pesando a quanto o espírito do Natal obriga, pois se via na contingência de acolher quem lhe batesse à porta, ainda que fosse- que arrepio!- um espectro!
Quando entraram na sala, uma corrente de ar gelado varreu o espaço e quase apagava o lume. Mas o acolhimento que todos dispensaram a Mr Scrooge, em atenção à sua edificante história, recentemente relembrada, rapidamente repôs o ambiente familiar.
- Edificante, dizem vocês? Bah! Scrooge quase vociferava, apoplético, quando alguém o sugeriu, mais para fazer conversa que outra coisa.
- Ó Sr Scrooge, por favor, deixe de pairar por aí, que nos faz vertigens, disse Bob Cratchit, sempre muito pragmático. Sente-se aqui à mesa connosco, e desembuche, que todos já perceberam que está mesmo a precisar!
Entretanto, convém referir que nem todos encaravam com tanta fleuma o estranho visitante. O poeta Laurence, aqui para nós, tremia como varas verdes, prenúncio de um ataque de taquicárdia, e aproveitou a desculpa de tratar dos poemas celtas por escolher, para se enfiar por debaixo da mesa (onde ainda assim podia ouvir a história que Ebenezer Scrooge se preparava para contar...).

(Recomendação: não perca o próximo episódio)

EUTERPE, musa da Música

Autor: Camille Roqueplan (1802-1855)

26 dezembro 2011

Relato que se faz e apresenta da sessão que teve lugar poético em casa dos Cratchit, na noite de Natal do Ano da Graça de 2011: 1ª jornada

Passada a epítome das festas, com a celebração familiar do Natal, repartido ou não entre a noite e o dia propriamente dito, sempre à volta de muitas vitualhas apropriadas à tradição e de não menos alcoólicos néctares, é tempo de cumprir a promessa de narrar, aqui, para que fique registado nos anais imorredoiros deste prestimoso blogue, a crónica da sessão dita poética, inspirada pelo respectivo Espírito que, como é do conhecimento universal, surgiu da síntese feliz que C. Dickens resolveu em boa hora fazer dos três Espíritos de Natal, num rasgo genial de re-escrita do seu Conto.
Convém dizer que a sessão em casa dos Cratchit, na sala pobremente guarnecida, mas especialmente preparada para o acontecimento, foi precedida de alguns preparativos: em primeiro lugar, havia o convite ao poeta Laurence, o qual tinha ficado com a incumbência de seleccionar material alusivo à Quadra; depois, foi pedido a M. Dikens um poema por ele escolhido, para ser incluído na sessão e também integrar a ementa da consoada dos que não pudessem estar presentes em casa dos Cratchit.
Era expectável que este evento pudesse ajudar a renovar o próprio Espírito do Natal, cansado e erodido por tanta repetição: sempre a mesma fórmula sócio-familiar, em crescendo de aborrecimento, com o mesmo tipo de filmes televisivos, publicidade e mais publicidade; cheio de luzes pisca-pisca, de ausência tácita de denúncia e de protestos de bondade faz-de-conta-que-é-para-sempre.
Um pouco depois da hora aprazada, apresentou-se, na casa de St George Avenue, devidamente enfarpelado, o poeta Laurence, a tempo de participar do repasto natalício, o qual, por um deslocamento geográfico do epicentro da estória, não constaria nunca de ganso assado, podendo, remotamente, incluir peru recheado, mas constaria sim, impreterivelmente, de bacalhau com todos, como manda uma tradição de origens vagamente vislumbráveis, relacionadas com um gosto local enraizado a partir da prática gastronómica de muitas sextas-feiras quaresmais, (ou qualquer outro motivo à escolha de melhores investigadores).
Voltando à vaca fria, que é como quem diz, ao bacalhau cozido, à ceia de Natal, acolitado aquele por tinto de Portalegre, temos à volta da mesa a família Cratchit em versão reduzida (não porque tivesse acontecido algum mal ao Tim ou a qualquer outro membro, note-se) e o poeta, que faz as delícias da dona da casa por tão bem se bater com a refeição.
Mal tinham os comensais engolido a terceira dose de sobremesa, retine a campainha da porta... Olá! Será gente ou será espírito?
...
(Nota: a continuar com mais episódios só se houver adesão de leitores)

19 dezembro 2011

CONTINUAÇÃO DE UM CONTO DE NATAL ( 6 )

Charles Dickens estava então decidido a rescrever a história de Ebenezer Scrooge. Sabia que o protagonista não havia gostado do Espírito do Natal Passado, e ainda menos do Espírito do Natal Presente com o seu despesismo e ostentação, e do Espírito do Natal Futuro nem era bom falar. Sobretudo, estes espíritos tinham-no assustado e induzido a praticar acções que não obedeciam à sua racionalidade de homem de negócios.
O escritor lembrou-se de substituir estes três espíritos por um único de valor acrescentado a que chamou Espírito do Natal Poético, e deitou mãos à obra. A decisão era arriscada, pois não se sabia ao certo como reagiria Ebenezer Scrooge. Porém, se quisermos falar segundo uma espécie de linguagem hoje muito usada por políticos e jornalistas nas suas intervenções mediáticas, diríamos que o escritor tinha muito bem definido o seu caderno-de-encargos, não empurrou-os-problemas-com-a-barriga, e fez de forma exemplar o seu trabalho-de-casa.
Um Espírito do Natal Poético como este, capaz de transfigurar o habitual conformismo da quadra, exigia de Charles Dickens a criação de uma personagem de recorte humano que representasse os novos valores que vinham do alto. Foi assim que surgiu na sua imaginação de artista o poeta Laurence, detentor de uma compilação de poemas natalícios que ia das canções dos remotos bardos celtas até à moderna poesia da estética pré-rafaelita.
E então, coisa extraordinária, vamo-nos deparar com a festa da noite de Natal em casa de Bob Cratchit, toda ela preenchida com leituras de poemas alusivos à quadra festiva. O poeta Laurence, convidado pela senhora Cratchit, sorria com indisfarçável satisfação para as filhas do casal, as meninas Belinda e Martha, e até o pequeno Tim, com a sua vozinha de criança débil, se dispôs a recitar um poema:

Christmas is coming,
The geese are getting fat
Please put a penny
In the old man's hat
If you haven't got a penny
A ha'penny will do;
If you haven't got a ha'penny
Then God bless you!

Coisa maravilhosa, ver assim irmanadas pelo poder da poesia de Natal pessoas de tão diversas índoles e disposições anímicas!
A nova fórmula do conto agradou a Ebenezer Scrooge, pelo que deixou de apoquentar o autor com as suas diatribes de personagem ressabiada. Diz-se, embora não haja certezas disso, que o Espírito do Natal Poético atravessava, como todos os espíritos poéticos, grandes dificuldades financeiras. Ebenezer Scrooge ter-lhe-á emprestado dinheiro a altos juros, pois o prestamista não perdia a oportunidade de fazer um bom negócio, até com os espíritos.
E pronto, é o fim da continuação-de-um-conto-de-Natal. Ainda bem que tudo acabou em bem e que o escrevente pode agora encerrar a loja e ir à sua vida sem mais delongas. UM BOM NATAL PARA AS QUERIDAS LEITORAS.

THE END

Alverca upon Tagus, December, 2011

18 dezembro 2011

CONTINUAÇÃO DE UM CONTO DE NATAL ( 5 )

Tranquilizem-se as benévolas leitoras que esta continuação-de-um-conto-de-Natal não está longe de chegar ao fim. Não é que não houvesse matéria para prolongar a história por mais alguns meses – sei lá, até por alturas de Quinta-feira de Endoenças ou do feriado do Corpus Christi, que aliás já não será feriado, por intervenção oportuna e saneadora das potências estrangeiras que agora governam o país. Acontece porém que o escrevente tem de ir tratar da sua vidinha, ausentando-se por tempo incerto para parte se calhar igualmente incerta, o que o impede de ficar aqui agarrado à escrita, debitando diariamente os episódios como se fosse esse o seu ofício e não tivesse mais nada para fazer. Tenha-se em conta que o ecrã do computador não é o mundo e que, como diz o outro, há mais vida para além do défice, ou, aliás, desculpe-se o lapsus linguae, mais vida para além das teclas.
Sendo assim, não entremos em detalhes sobre a conversa, ou desconversa, entre Charles Dickens e Ebenezer Scrooge, e atentemos na seguinte letter inédita encontrada no espólio do grande escritor inglês:

December, 27 th, 1843

My Dear Friend,
I write some lines to tell you a project I have in view. Projecto de concretização urgente, diga-se, que terei de concluir até ao final do ano, dado o risco que corro de assistir à implosão trágica e irreversível de alguns dos meus apreciados contos de Natal.
Acontece, My Dear Friend, que uma bizarra personagem por mim criada, Mr. Scrooge – deves estar a ver quem é, um agiota da city que enriqueceu à custa da ruína alheia –, se revoltou contra a minha pessoa por não concordar com o curso da história que inventei para ele. Esta atitude foi desencadeada pela intervenção do espectro do castelo de Elsenor, uma referência em má hora introduzida no meu conto, que tendo adquirido foros de personagem veio desassossegar o citado Mr. Scrooge.
É claro que tive de lhe dar um raspanete – esta expressão tão informal não é minha, por ela peço desculpas, mas de uma simpática leitora que a adoptou e eu, por graça, agora a uso. Só que a dita personagem esperneou que nem um frango de capoeira na degola, que não havia direito, que não estava para aturar os espíritos que o assediavam, e que tratasse eu de dar uma nova orientação à história porque se não o fizesse ou se queixava ao sindicato ou se passava para outra história com armas e bagagens, que isto de concertação social entre autor e personagens era uma prática adquirida, não fizesse eu como um certo governo de um país aliado, quase dois séculos mais tarde, que se dispôs a aumentar o horário de trabalho em meia hora diária e nem se dignou ouvir os parceiros sociais sobre o assunto.
Estás a ver a questão: eu que sempre fui pelas ideias socialistas de Saint-Simon e de Proudhon, que até cheguei a ler um tal Marx que na altura ninguém sabia quem era, que exultei com a prosa de um certo João Baptista de Almeida Garrett, que andou aqui pela ilha, fugido aos reaccionários do seu país – pobre país, aliás, que nem se regenerou com o sangue que lhe injectámos da nossa estirpe dos Lencasters – e que escreverá esta coisa fabulosa - E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico? -, pois eu, que sou um homem de ideias avançadas, que sempre estive do lado dos humilhados e ofendidos como um Dostoieveski de língua inglesa, sou obrigado a dar abrigo às reivindicações dum agiota e a pactuar com a usura para que a minha literatura sobreviva e os meus leitores me possam ler.
O projecto que resolvi empreender foi, agora o digo, o de rescrever a história de Mr. Scrooge. Verás como, My Dear Friend.

Best regards.
Ever faithfully
Charles Dickens

16 dezembro 2011

CONTINUAÇÃO DE UM CONTO DE NATAL ( 4 )

A cultura literária de Ebenezer Scrooge era praticamente nula, como decerto já compreendeu a leitora atenta e acostumada a leituras sábias, e até o leitor, espécime naturalmente básico que se dedica aos livros por fraquezas da idade ou carências várias de que nem é bom aqui falar. Assim, se desconhecia a personagem de Hamlet e a do seu imortal criador, como poderia o prestamista saber a que episódio histórico se referia o Sr. Fish com aquela inescrutável apóstrofe latina. Falassem-lhe de juros e rendas, de letras de câmbio e de saques à vista, de papéis do tesouro e obrigações, e outro galo cantaria!
Porém, não se pense que o tu-quoque-Brute-fili-mi! que o antigo escolar do college de Oxford lhe atirara de chofre, assim como quem manda uma pedra bicuda à cabeça duma criança pequena, era de todo despropositado. Vejamos: anda uma personagem a passear de história em história, desfigurando as narrativas, subvertendo o labor do autor empírico que as gerara com um determinado sentido e propósito – ora o que é isto senão matar o pai que dá a vida e o pão à prole? Um Brutus, era aquilo em que Ebenezer Scrooge se havia tornado. O Sr. Fish sabia do que falava, pois também ele já havia sentido, por mais de uma vez, o mesmo desejo, denso e penetrante como o smog londrino, de dar um pontapé na altivez de Sir Joseph Bowley e partir à descoberta de outra história em que pudesse ser mais feliz como personagem. Mas adiante, deixemos estes considerandos, que não há meio de se chegar ao que interessa.
Em poucos minutos, enquanto Sir Joseph Bowley perorava perante o atónito Toby Veck sobre a necessidade de reprimir a criminalidade em Inglaterra e as vantagens de se entrar no ano novo com as contas pessoais devidamente saldadas, Ebenezer Scrooge era esclarecido sobre a história do príncipe Hamlet da Dinamarca. O Sr. Fish levou tão a peito as suas explicações que acabou também por falar dos Capuletos e dos Montecchios, ilustres famílias de Verona, e do mouro Otelo e de Desdémona, gente bem conhecida em Veneza, de tal forma que o bom do prestamista, aturdido com tanta sabedoria, pretextou assuntos de serviço no seu escritório e passou-se rapidamente para a história que por direito autoral lhe pertencia.
Chegou ao escritório no preciso momento em que o empregado Bob Cratchit acabava de copiar, com os vagares que lhe são conhecidos, a acta dum acordo de credores da firma Coal & Shipments Ltd., de Tower Street, nº 5. Mas logo estacou, assustado, perante o quadro que se lhe deparava: sentado à sua secretária, levemente inclinado sobre ela como quem trabalha, a barbicha hirsuta e o cabelo dividido por um risco ao lado que o projectava para o alto como duas excrescências peludas, aproveitando o tempo para retocar alguns capítulos de “Oliver Twist”, Charles Dickens, him himself, aguardava calmamente pela sua chegada.

15 dezembro 2011

CONTINUAÇÃO DE UM CONTO DE NATAL ( 3 )

Há que dizer desde já, procurando responder a observações de algumas perspicazes leitoras, que o espectro do castelo de Elsenor não aparece nesta história por mero acaso nem por simples capricho do seu autor. Autor é (autor)idade, como muito bem se sabe, sucedendo que não lhe cabe explicar ou prestar satisfações a quem quer que seja, apenas dar a ler ou a tresler, e cada um ou cada uma que se arranje como muito bem puder, se não gostar da comida que deixe na borda do prato, que aquilo que uns não querem estão outros mortinhos por saborear – haja vista aquele caso do jantar de bucho no conto “Os Sinos de Ano Novo”. Só que, condescendendo com a curiosidade manifestada, por vir de quem vem e não de pessoas quaisquer, aproveita o autor para esclarecer que o espectro do castelo de Elsenor aparece neste texto, digamos, por arrasto, visto fazer parte da história de Scrooge logo desde a segunda página da mesma, não sendo de estranhar, pois, que vendo tantos fantasmas à volta do desgraçado protagonista, ele próprio que já ali estava preparado para o que desse e viesse como uma espécie de fantasma residente, se tenha disposto a entrar também em cena. O que isto tem a ver ou não com o Natal, é o lado para que melhor dorme este autor.
Dito isto, e já lá vai quase metade do fascículo de hoje, saiba-se que o espectro do castelo de Elsenor, pronunciadas que foram aquelas suas últimas palavras, desapareceu, súbita e inexplicavelmente, da presença de Ebenezer Scrooge. Ora o prestamista, que nunca tinha ouvido falar de Hamlet nem do dito castelo, ficou a arder de curiosidade, sem possibilidade de saber mais sobre a assombração que o visitara, a qual, depois do terror inicial que lhe causara, até começara a despertar-lhe alguma simpatia. A sua primeira ideia foi a de que poderia ser a alma penada de algum importante senhor das highlands da Escócia, região do reino com bastantes castelos assombrados e grande cópia de espectros dentro deles. Seria, não seria?
Como nenhuma personagem da sua história lhe parecia à altura de o esclarecer, resolveu procurar o Sr. Fish, secretário de Sir Joseph Bowley no conto “Os Sinos de Ano Novo”, conto que estava ali à mão de semear no mesmo livro da história em que ele é protagonista. À pesca do Sr. Fish, fisgou-o naquela parte do conto em que ele está na biblioteca a receber a carta do recadeiro Toby Veck. Pediu licença para lhe falar à parte, alegando ser assunto de família.
- Scrooge, meu velho! – exclamou o Sr. Fish mal o viu, aproveitando logo para pedir notícias de Charles Dickens, o criador de toda aquela gentalha, ao que Ebenezer Scrooge disse nada saber, que até estava um bocado ressentido por causa da caterva de espíritos que ele tinha criado para a sua pessoa, mas que, enfim, tudo tinha já passado, e que ultimamente até havia conhecido um espírito interessante, que se dizia pai de um tal Hamlet e pairava habitualmente num castelo chamado de Elsenor, que ele não sabia onde ficava, mas que agora ardia de curiosidade por saber.
O Sr. Fish deitou-lhe um olho de goraz sabichão, entendido, conhecedor das fossas abissais da alma das personagens, e disse num latim frouxo e arrastado, mal aprendido no curso de bacharel que não chegara a concluir em Oxford:
- Tu quoque, Brute, fili mi !

14 dezembro 2011

CONTINUAÇÃO DE UM CONTO DE NATAL ( 2 )

Foi só ao fim de um certo tempo, o suficiente para que Ebenezer Scrooge sentisse aumentar de forma incontrolável a dor de barriga e se visse na situação humilhante de lhe escorrer pelas pernas uma massa grossa entre o líquido e o pastoso constituída por aquilo que muito bem se imagina, que a assustadora aparição resolveu falar.
– Desgraçado onzeneiro que nunca entrarás na barca santa do auto de Gil Vicente! Fica a saber, infeliz, que não tenho nada a ver com o fantasma do teu sócio - boa encomenda era ele! -, nem com os três espíritos grotescos que te visitaram. Não pertenço a esse mundo de vãs assombrações, mas sim ao dos que sofreram a perfídia, o crime, o roubo dos bens terrenos e do aconchego familiar. A minha mágoa, que uma triste vingança não logrou remediar, arrasta-me pelo mundo como um morto-vivo. Não te acenarei com natais de farta-brutos nem com a felicidade terrena, que não existe, não te procurarei emendar, pois já não tens emenda, quero apenas que saibas algumas coisas e que as possas transmitir a quem estiver a tempo de ainda se servir delas.
O prestamista, apavorado, sondou a porta da sala avaliando as possibilidades de se escapar, mas num momento, tão minúsculo como a cabeça dum alfinete, viu a sua vida toda desde pequenino, e isso fê-lo deter-se. Dir-se-ia que um olho mágico lhe nascera na cara ou que lhe era dado contemplar o aleph de Borges, embora não tivesse consciência de nada disso, coisas que estavam para além do seu tempo e da sua compreensão. Molhado e sujo como um rato de esgoto, mastigava a saliva amarga e tremia do corpo e da alma, mais assustado que Jonas dentro da barriga da baleia ou que Daniel na cova dos leões.
Sim, via a jovem Belle, a quem se ligara por um compromisso antigo, e que o deixara no caminho da vida abandonando o “sonho inútil” de seguir com ele. Certo, ela teria as suas razões, mas faltara-lhe força para se impor e contribuir para a sua transformação como homem. Lentamente, à medida que via mais episódios da sua vida, o temor regredia e uma relativa tranquilidade começava a instalar-se na sua pessoa. A influência deste quarto espírito levava Ebenezer Scrooge a ver os factos do seu passado de maneira diferente, a tomar como certo que nenhum homem vale por si só, sendo fruto das suas tendências e das tendências de todos os que o rodeiam. Porque falhara a sua relação com Belle? Vivia agora uma vida tranquila e sem história, ainda que com uma filhinha querida, na companhia do marido, rindo-se das suas singularidades de prestamista velho e avarento. E atreveu-se a questionar a assombração.
– Sabes, espírito? Desde que me apareceste já passei de um estado de completo terror à compreensão de algumas coisas importantes. Quem és tu, afinal?
O espírito pareceu tornar-se maior como uma sombra que cresce da própria sombra até encher por completo todo o espaço em que se concentra. Mas já não era assustador. E disse:
– Sou o único espírito verdadeiro a que o teu criador se referiu no conto que escreveu. Sou o espírito do pai de Hamlet, o espectro do castelo de Elsenor.

13 dezembro 2011

CONTINUAÇÃO DE UM CONTO DE NATAL ( 1 )

Ebenezer Scrooge, prestamista da praça de Londres no tempo da rainha Vitória, sempre acreditara nas potencialidades dos mercados financeiros, na mão invisível que dirige a economia, nas vantagens de poupar dinheiro e nas virtudes do juro que Santo Agostinho tão injustamente vilipendiara. Porém, assediado em vésperas de Natal por três espíritos perversos, modificou inopinadamente a sua forma de pensar, acabando por oferecer um peru de elevado preço ao seu empregado Bob Cratchit – um calaceiro que se deixava dormir sobre a carteira de amanuense enquanto copiava com infinito vagar, ao ritmo fatigado da sua pena de pato, as desassossegantes frases do mister de agiota : “Aos tantos dias do mês tal, do ano tal, pagará por esta minha única via de letra, a mim ou à minha ordem, a quantia de tal e tal e tal.”
Ainda que embarcado nesta onda de abro-as-mãos-e-dou-o-que-tenho-e-tu-não-tens, Ebenezer Scrooge, que não era parvo, ia meditando nas consequências para o negócio da sua inesperada fraqueza natalícia. Espíritos persuasores e desavergonhados, aqueles três que o haviam visitado – pensava. Mal sabia ele que com o oferenda do peru ao seu empregado, instituíra entre o patronato o hábito das broas, mais tarde conhecido pelo nome prosaico de subsídio de Natal, remunerações tão estapafúrdias e perigosas que os governos dos séculos seguintes se veriam obrigados a legislar no sentido de as moderar ou até acabar com elas. Mas adiante.
Ebenezer Scrooge, passados os efeitos da emoliente catequese dos três espíritos, já meditava naquilo que agora se sabe e em mais umas quantas coisas – como, por exemplo, a melhor forma de fazer a penhora duma casa cujo proprietário tinha as rendas do empréstimo em atraso ou a conveniência de preparar novas aplicações em papéis da dívida pública –, quando de um canto da sua sala, por detrás de uma cómoda de nogueira velha em que guardava as modestas roupagens, lhe surge, enorme e tenebroso, o vulto de um quarto espírito.
– Quem és tu? – perguntou com uma grande secura de boca, sentindo comichões nos artelhos e um forte congestionamento abdominal.
O espírito fez-se bronco, fingindo que não ouvia, e Ebenezer Scrooge pôde ver-lhe o cenho carregado e feio, a fímbria da túnica dez centímetros acima do soalho, sem pés que se notassem, e as mãos lívidas como nuvens que lhe saíam das mangas largas e ilusórias.

12 dezembro 2011

Respondendo a um auto desafio, com a condescendência do autor e esperando mais episódios, aqui vai uma continuação:

O CONTO DE NATAL CONTINUA


Enquanto atravessava a Rua do Ouro, por entre a azáfama de mais um Natal, recordava, sim, esse episódio já longínquo, as dúvidas que ainda o assaltaram, antes que acabasse a magia do período anual da solidariedade que também a ele envolvia.
Passadas quase duas décadas, muitas coisas tinham acontecido, mas não conseguia deixar de evocar algumas impressões que o tinham marcado naquela altura, nem ele sabia exactamente porquê e lhe surgiam agora, como um eco intemporal.
Bem, diga-se em abono da verdade que, passadas as primeiras sensações, depois de sair, um tanto atordoado, da zona do hospital, onde se tinha dirigido para dar sangue, fazendo o que considerava a boa acção de uma vida, caiu em si, e reflectiu mais maduramente sobre a situação em presença.
Desde logo, apercebeu-se que as dúvidas quanto ao seu estado efectivo de saúde talvez não fossem de desprezar, pois apesar de ser novo e se sentir no auge do vigor físico, os riscos que tinha corrido de contrair H.I.V. ou outra doença sexulamente transmissível, eram reais, e conforme as horas daquele mesmo dia se passavam, entre as deslocações na cidade e os deveres programados, a dúvida insidiosa crescia no seu subconsciente, e um pensamento insistente tomava forma: e se...? Sim, havia uma voz contraditória que se sobrepunha à estouvadice instalada, ao resultado prático de uma filosofia de vida que tinha como móbeis principais os desejos, a vontade, os gostos, os interesses exclusivamente pessoais, num registo de egocentrismo carinhosamente cultivado, dir-se-ia até, cultivado com requintes, em rotinas inalteráveis que dificilmente se compaginavam com as de outras pessoas. Acontecia sobretudo que, mau grado, estas dúvidas começavam a minar aquela barreira de segurança e certezas que tão cuidadosamente tinha construído para si mesmo.
Recordava o quanto tinha ficado contrariado por se sentir como que excluído da participação solidária do espírito natalício, para logo a seguir voltar à preocupação exclusiva consigo mesmo.
Enquanto descia as escadas da estação do Metro e, como um autómato, passava as barreiras para as plataformas, reflectia sobre o pouco que, na realidade, tinha mudado na sua vida.
Havia, no entanto, mais qualquer coisa, sim, havia uma consciência diferente de si mesmo, uma capacidade de auto-distanciamento que a idade proporciona (nem tudo se perde). Até parecia que o Natal era uma época propícia a descobertas inéditas. Foi então que o zunir do rodado ritmado, acelera-desacelera do comboio lhe trouxe uma pergunta insistente: que sentido, que sentido, que sentido? Ao mesmo tempo pensava, que tolice, isto não são os sinos do Ano Novo!
Relanceando o olhar pela carruagem, apercebeu-se da indiferença mole que rastejava pelas superfícies encardidas e se colava à roupa, às malas e mochilas, à pele dos passageiros e apeteceu-lhe gritar, na certeza de que ninguém o ouviria: a minha vida é de uma monotonia atroz!
A seu tempo, tinha deliberadamente trocado compromissos pessoais, afectivos, quiçá familiares, pela liberdade concreta de uma vida de quase isolamento. Perguntava-se agora que liberdade era essa, cujo preço eram horas a mais a sós consigo e com o seu vazio interior. Alguma coisa de essencial lhe tinha escapado, nas escolhas que julgara fazer; o que tinha, apenas o devolvia sempre a si mesmo, numa espiral depressiva, e isso era mais doloroso de admitir que aquela incapacidade de dar sangue de há duas décadas atrás.

11 dezembro 2011

POEMETO EM PROSA PARA UM ANO NOVO

Pedes aos deuses que te favoreçam; ao destino, que te poupe; ao acaso, que te seja propício; e até pedes aos teus irmãos ainda mais pobres que te ajudem!
Só a ti próprio não pedes esmola, mendigo!
Porque não pedes esmola a ti próprio? Verias que és muito mais rico do que julgas.

JOSÉ RÉGIO, Colheita da Tarde

10 dezembro 2011

UM POEMA DE NATAL de Fernando Pessoa

Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.

FERNANDO PESSOA, Poesias, Edições Ática

UM CONTO DE NATAL de Alexandre O´Neill

A ideia de há muito que o andava a desassossegar. Depois dos primeiros ensaios de auto-apoucamento, Valério conseguiu um primeiro grande resultado: meter-se todo, todinho, numa das pernas (por sinal, a esquerda) do par de calças de sarja que comprara nas Confecções Nilo por trezentos convidativos escudos. Com voz-de-dentro-de-calça chamou a mulher:
- Ó Quinhas anda ver!
levou um susto ao dar com uma perna de calça sustentando-se em pé sem, aparentemente, homem lá dentro. Logo se refez para fingir que não era capaz de o encontrar:
- Mas onde é que se teria metido meu Lèrinho!
- Aqui, sua estúpida! – desabafou-abafou a voz de Valério.
Quinhas continuava a brincadeirinha apalpando a perna vazia e bichanando:
- Lèrinho, Lèrinho!
Quando Valério, por fim, se libertou da perna da calça e retomou o seu (natural) ascendente, trocaram prazenteiramente insultos como só os casais muito unidos sabem trocar.
Quinhas seguira os exercícios de auto-apoucamento de Valério. Este começara a enovelar-se pelos cantos da casa: passara de seguida aos gavetões da cómoda e acabara por ser encontrado numa das gavetas da mesa da cozinha. Dessa feita, Quinhas gritara. É que Valério saltara lá de dentro e avantajara-se brandindo aos urros um facalhaz.
- Que horror, querido, pareces um cossaco! – dissera Quinhas que, no autocarro dessa manhã, lera nas Selecções um artigo dum biólogo americano sobre cossacos.
E, então, solenemente, como só os casais muito amigos sabem fazer, combinaram logo ali que Valério, por mais apoucado e encafuado que estivesse, não pregaria sustos daqueles à sua Quinhas. E beijocaram-se, prazidos. Os exercícios de auto-apoucamento de Valério tinham um fim: preparar a grande surpresa para o Necas, quando ele viesse a férias pelo Natal. E vai daí – como o tempo corre! – o Necas veio. Valério considerou o filho com apreensão. Valeria a pena a surpresa? Necas estava tão grande! Aquela sombra no beiço, aquela voz do peito pontuada de estridulações…
- Ora, o Necas é ainda tão criança! – sossegou-o Quinhas.
Criança que era, o Necas só muito raramente acordava no meio do sono com as movimentações tardias que naquela casa estavam a ser o teor diário. Mas na véspera do Natal, o silêncio foi inesperadamente tão grande que o Necas passou toda a noite numa excitação que nem te digo. Coisas de crianças, coisas da quadra?
Ao levantar-se, pés nus, para ir ver o sapatinho, o Necas já ia a bordo dos patins que a mãe lhe prometera. Quando deu com o pai, apoucado, a acenar-lhe amigavelmente da amurada do sapato, Necas fugiu a procurar no regaço de Quinhas a verdadeira dimensão do seu horror:
- Sa…Sa…Saiu-me o…o… o pai no sa…sa…sapato! – soluuuuçava o órfão de vivo. E a mãe, ultrapassada pela reacção do Necas, consolava-o como ia podendo, prometendo-lhe que o pai voltaria a crescer, a crescer.

Alexandre O´Neill in Gloria in Excelsis, Histórias Portuguesas de Natal, (coord. Vasco Graça Moura) col. Mil Folhas, Público.

09 dezembro 2011

SESSÃO DE DEZEMBRO - "Contos de Natal" de Charles Dickens

Piero di Cosimo (1462-1521), "Madona com Menino Jesus lendo", óleo sobre madeira, Museu de Belas Artes de Estocolmo.

Contrariamente ao que se chegou a admitir, a sessão de Dezembro terá lugar , como é habitual, na última sexta-feira do mês, dia 30, que também é a última do ano. Que o leitor da imagem vos inspire.

04 dezembro 2011

01 dezembro 2011

PALAVRAS PARA QUE VOS QUERO

Não é só o Charles Dickens que tem contos de Natal...

Aqui vai um conto de Natal deste escriba, escrito em 2006 e agora revisto e corrigido (se é que tem correcção possível!) para publicação neste exigente blogue:

UM CONTO DE NATAL

Assediava-o um inusitado desejo de praticar o bem, de amar o próximo como a si mesmo, de se abrir a rasgos de generosidade em relação a indigentes e outros desprotegidos da sorte. Quem o conhecia – amador da sua pessoa acima de todas as coisas – só podia atribuir tal modificação ao espírito do Natal, ao ambiente da quadra festiva que se vivia. Os ornamentos das ruas, os apelos à paz e ao amor feitos em baladas cheias de emoção que a rádio e as instalações sonoras das superfícies comerciais com tanta insistência difundiam, contribuíam para reforçar os laços de solidariedade entre os homens, para fazer despertar os tesouros da fraternidade, e enchiam-lhe o coração de bons sentimentos e benévolas disposições. Depois de todo um ano em que atraiçoou amizades, atropelou direitos, mentiu e guerreou, era extraordinário sentir o maravilhoso estado de alma que nele se manifestava!
Naquele Natal, a maior das boas acções que tinha projectado praticar era a de fazer uma dádiva de sangue. Havia tantos acidentes na estrada, tantas pessoas internadas dependentes de transfusões e, por outro lado, como os serviços de saúde não cessavam de informar, tanta falta de sangue de todos os tipos, que estava firmemente disposto a tornar-se um dador benévolo.
Foi assim que numa manhã da semana que antecedia o Natal, transbordando de amor pelo próximo, rumou ao serviço de recolha de sangue do hospital da sua área. Tirou a senha, esperou pelo atendimento, e não demorou muito a sentar-se diante de uma jovem médica, bonita e inquiridora.
- Idade?
- 29 anos.
- Estado civil?
- Solteiro.
- Sofre de alguma doença crónica?
- Não.
- Alguma vez teve relações sexuais com homens?
Aturdiu-se com esta pergunta.
- Sim ou não? – insistiu ela.
- Não!
- Alguma vez utilizou drogas por via endovenosa?
- Não!
- Quantos parceiros sexuais teve nos últimos seis meses?
Aqui hesitou na resposta. Não se importava nada de declinar o número de mulheres com quem praticara sexo nos últimos tempos. Afinal até era daqueles que tomavam nota na agenda de cada vez que uma nova experiência lhe acontecia. Não fazia segredo das suas conquistas e tinha sempre aberta, para quem quisesse ver, a sala dos troféus. Mas incomodava-o que a questão lhe fosse colocada de forma tão neutra e profissional por uma jovem médica de rosto atraente e, sobretudo, que ela não tivesse juntado ao radical da palavra “parceiros” o morfema de género feminino “a” adequado à sua condição de heterossexual. Mas lá respondeu, enfatizando a palavra “parceiras”. A médica então perguntou:
- Usou sempre preservativo?
Meteu a mão na consciência, até estava com vergonha de responder, mas logo se abriu perante a insistência dela. E foi aí que as coisas começaram a complicar-se. Tinha tido não uma, mas várias relações de risco, o que não quadrava com os padrões comportamentais definidos para a aceitação de sangue dos dadores. Ainda por cima fizera uma tatuagem nas costas, adorno corporal que pareceu não agradar à médica.
- Bem, para já não podemos aceitar o seu sangue. Vamos ter de fazer análises e o senhor terá de aguardar pelos resultados.
Esmagado pela rejeição, tartamudeou umas palavras de súplica: que não havia nada de mal com o seu sangue, que era um homem saudável, que aceitassem a dádiva e logo fariam as competentes análises, veriam como era sangue de primeira qualidade, sem nenhum problema.
- E pensa o senhor que o hospital pode dar-se ao luxo de gastar bolsas de recolha e demais consumíveis com sangue que poderá não estar em condições? Até parece que não conhece o rigor das restrições orçamentais! – Isto disse a médica enquanto aprontava uma seringa para realizar uma colheita de análise.
Saiu cabisbaixo, infeliz. Ainda passou pela salinha anexa para comer umas bolachas e beber um cálice de vinho do Porto. Estava mesmo a precisar.
Dispusera-se a cumprir uma boa acção que pudesse integrá-lo de forma plena na onda de fraternidade da quadra natalícia, e era impedido de o fazer por um sumaríssimo inquérito que lhe descobrira uma tatuagem nas costas e uns quantos episódios de sexo inseguro. Francamente, já não se podia viver o espírito do Natal!
No caminho para casa ia meditando, pesaroso, na melhor forma de ultrapassar aquele revés. Distribuir comida aos sem-abrigo do bairro? Dar esmola para as obras de caridade da igreja? Comprar uma caixa de postais de boas-festas da Unicef? Alguma solução teria de encontrar para concretizar os seus desejos de amor pelo próximo, e não poderia passar daqueles poucos dias que ainda faltavam para a festa do nascimento do Menino Jesus. É que depois já seria tarde: a seguir ao Natal, voltaria certamente a estar muito preocupado consigo e com os seus projectos pessoais.

29 novembro 2011

Contos de Natal - CHARLES DICKENS - 16 de Dezembro

"O Natal do Senhor Scrooge" e "Os Sinos de Ano Novo" - contos de Natal de Dickens. Podem ser lidos na Colecção Mil Folhas do Público. O título Balada do Natal (Editorial Gleba) corresponde ao primeiro daqueles contos.

AINDA A SESSÃO DA MADEIRA

Notícia e comunicações dos membros da Comunidade em:

www.bprmadeira.org/site/index.php/noticias/1234-aconteceu

24 novembro 2011

IMAGENS DO OCEANO DE SOLARIS II

Algumas outras criações do oceano, as quais são muito mais raras e de duração muito variável, separam-se por completo do corpo que as gerou. As primeiras descobertas destas “independentes” foram consideradas – erradamente, como mais tarde se provou – restos de criaturas que vivem nas profundezas do oceano. (…) Nas saliências rochosas de uma ilha aparecem ocasionalmente estranhos corpos semelhantes a focas, estendidos ao sol ou arrastando-se preguiçosamente até voltarem a fundir-se com o oceano.

LEM, Stanislaw - Solaris, Mem Martins, Publicações Europa-América, 2003, p. 134.

18 novembro 2011

"SOLARIS" de Stanislaw Lem - 25 de Novembro, 21 horas


Estou a ler com interesse este romance do subgénero ficção científica que é o nosso livro do mês. Acabei de entrar no capítulo VI, “The Little Apocrypha”, encontrando uma referência cultural de vulto: nada mais nada menos que a Martinho Lutero (1483-1546), frade agostinho, professor de Sagradas Escrituras em Wittenberg (lembram-se de Hamlet?), intimado pela bula Exsurge Domini a retractar-se das suas noventa e cinco teses contra a virtude das indulgências concedidas pelo Papa aos contribuidores para as obras de reconstrução da Basílica de São Pedro.
Num diálogo entre Snow, um perito em cibernética da Estação Solaris, e Kris Kelvin, psicólogo chegado da Terra, pergunta o primeiro, aludindo à forma possível de o seu interlocutor afastar uma inquietante aparição que o obsidiava: “Tentou a corda, o martelo? Ou o tinteiro com boa pontaria, como Lutero?”.
Isto porque Lutero, num dos seus retiros espirituais, terá sido visitado pelo diabo que lhe entregou uma extensa lista dos seus pecados. O frade pecador examinou-a, mas num acesso de cólera contra o tentador arremessou-lhe um frasco de tinta vermelha que estava sobre a sua escrivaninha. Parece que o mafarrico terá metido o rabo entre as pernas e retrocedido sem delongas para as profundezas infernais.
Continuemos a leitura.

17 novembro 2011

PLANO DE LEITURAS PARA 2012


1º trimestre
Janeiro – Ficções de Jorge Luís Borges
Fevereiro – Quando Nietzsche Chorou de Irvin D. Yalom
Março – A Brasileira de Prazins de Camilo Castelo Branco
2º trimestre – Autores portugueses contemporâneos
Abril – O Ouro dos Corcundas de Paulo Moreiras
Maio – O Bazar Alemão de Helena Marques
Junho – Quando o Diabo Reza de Mário de Carvalho
3º trimestre – Clássicos
Julho - Fedra de Eurípedes
Agosto – O Príncipe de Nicolau Maquiavel
Setembro – O Elogio da Loucura de Erasmo de Roterdão
4º trimestre – Autores brasileiros
Outubro – Seara Vermelha de Jorge Amado
Novembro – Perto do Coração Selvagem de Clarice Lispector
Dezembro – Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis

Nota: as sessões de leitura realizam-se na última sexta-feira de cada mês a partir das 21 horas.

16 novembro 2011

CABRAL DO NASCIMENTO - Homem de ilha e de continente

Funchal, 14 de Novembro de 2011 - Elementos da Comunidade de Leitores no dia da sessão sobre Cabral do Nascimento

Devo dizer que não li muito de Cabral do Nascimento. A obra em que mais me detive, praticamente a única, foi no Cancioneiro de 1943, constituída por quarenta e oito poemas em que emergem os grandes eixos temáticos da sua lírica: a fugacidade do tempo; a condição do homem esmagado entre o passado e o futuro; a Ilha como prisão de quem anda à solta, as grades líquidas que tolhem e projectam o poeta para o circulo alto das palavras e dos sentimentos, porque, como diz com desconcertante simplicidade, o mar ficava no horizonte; e a vida, supremo bem que não se domina, abelha de Ferreira de Castro em Eternidade e borboleta da “Canção Dorida” em Cancioneiro.
Escreveu Maria Mónica Teixeira que Cabral do Nascimento sentiu como um homem de ilha e de continente. Portanto, foi um poeta do chão inteiro da língua portuguesa, língua que começou a formar-se nos cancioneiros medievais que ele tão bem conhecia e amava, sabendo nós, desde Fernando Pessoa, que a língua é a única pátria possível dos poetas.
Perguntava-me uma jornalista madeirense, momentos antes de iniciarmos a sessão, se eu achava que Cabral do Nascimento devia ser estudado nas escolas. Respondi-lhe que sim, pensando embora que o esquecimento é nuvem negra que se abate sobre os poetas e que nos tempos sem alma em que vivemos talvez nem o próprio Camões tenha o seu lugar garantido nos compêndios.

11 novembro 2011

SOLARIS - UM MAR DE EMOÇÕES

Donatas Banionis e Natalya Bordarchuc em Solaris (1972) de Andrei Tarkovsky

Um filme belíssimo de que muito gostei. Solaris – um mar de emoções atravessado pelas sombras fúlgidas de Cervantes, Tosltoi e Dostoievski. Neutrinos e átomos – a dialéctica do reencontro do amor.

E de seguida… a Madeira de Machim e Ana de Arfert.


02 novembro 2011

CABRAL DO NASCIMENTO: mais poesia




CANTIGA

Deixa-te estar na minha vida
Como um navio sobre o mar.

Se o vento sopra e rasga as velas
E a noite é gélida e comprida
E a voz ecoa das procelas,
Deixa-te estar na minha vida.

Se erguem as ondas mãos de espuma
Aos céus, em cólera incontida,
E o ar se tolda e cresce a bruma,
Deixa-te estar na minha vida.

À praia, um dia, erma e esquecida,
Hei, com amor, de te levar.
Deixa-te estar na minha vida
Como um navio sobre o mar.



Cancioneiro, 1943; Cancioneiro, 1963
In Cancioneiro, 1976

A Comunidade vai à Madeira...

... em busca de Cabral de Nascimento, o Poeta que, da palavra, fez a sua ferramenta. Biografia aqui.
Cabral do Nascimento por Abel Manta, descaradamente roubado ao Disperso Escrevedor

O Faroleiro

Apenas este ilhéu é que é pequeno
O resto é tudo grande: o tédio, a vida,
O dia enorme, a noite mais comprida,
E o mar, calmo ou feroz, rude ou sereno;

O tempo, esse narcótico veneno,
A dor, essa letárgica bebida,
O desejo, essa voz enrouquecida,
E a saudade, o distante e branco aceno.

Tudo profundo, imenso, na amplidão,
Eterno quási na desolação
E sobrenatural na solidão.

A luz vermelha a reflectir-se além…
Nenhum vapor que vai, nenhum que vem…
Farol e faroleiro - e mais ninguém

24 outubro 2011

SER OU NÃO SER

Qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.
Se os novos partem e ficam só os velhos
e se do sangue as mãos trazem a marca
se os fantasmas regressam e há homens de joelhos
qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.

Apodreceu o sol dentro de nós
apodreceu o vento em nossos braços.
Porque há sombras na sombra dos teus passos
há silêncios de morte em cada voz.

Ofélia-Pátria jaz branca de amor.
Entre salgueiros passa flutuando.
E anda Hamlet em nós por ela perguntando
entre ser e não ser firmeza indecisão.

Até quando? Até quando?

Já de esperar se desespera. E o tempo foge
e mais do que a esperança leva o puro ardor.
Porque um só tempo é o nosso. E o tempo é hoje.
Ah se não ser é submissão ser é revolta.

Se a Dinamarca é para nós uma prisão
e Elsenor se tornou a capital da dor
ser é roubar à dor as próprias armas
e com elas vencer estes fantasmas
que andam à solta em Elsenor.

MANUEL ALEGRE

23 outubro 2011

MÁRIO CESARINY/ You Are Welcome to Elsenor

O MANEQUIM

Quando Hamlet, Grã Senhor predestinado,
Ressuscitou em mim sua Loucura,
Quis eu, para o trazer de braço dado,
Modernizar-lhe o espírito e a figura:

Pondo-lhe um riso frígido e afiado
Nos lábios retorcidos de amargura,
Modelei-o num fraque bem talhado
Que lhe vincasse os gestos e a estatura.

Depois lhe abri o enigma da Ironia
Para que a sua atroz melancolia
Calçasse luvas… e ostentasse o ar fino.

Hoje, ó meu Grande! ó Príncipe de todos!
Já te posso exibir: Tens belos modos,
E sofres… mas consoante o figurino.

JOSÉ RÉGIO, Biografia

18 outubro 2011

Ser ou Não Ser



O célebre monólogo, numa excelente interpretação do actor brasileiro Daniel Oliveira...

08 outubro 2011

SÉCULO DAS LUZES...

Abro um espaço para referir a leitura, ontem, no Museu Ferreira de Castro, do romance A Religiosa de Diderot. A escolha da obra foi de um prezado elemento da nossa Comunidade que na altura própria disse o que tinha a dizer de tão discutido texto.
Levei o meu livrinho, comprado em 1972 ou 1973, cuja fotografia aqui deixo sobre um lavor em renda de uma tia que já está na Eternidade. Admire-se o belíssimo rosto de Anna Karina, a religiosa do filme de Jacques Rivette no ano já distante de 1966.
Diderot e Grimm, filhos de Belial, lá levaram ao engano o bondoso marquês de Croismare, o qual creditou como verdadeira uma história inventada por aqueles refinados malandros. Diga-se lá que de uma brincadeira não pode sair uma obra séria.

(O romance La religieuse começou a ser redigido por Diderot em 1760. Em Outubro de 1780 iniciou-se a sua publicação na revista Correspondance littéraire.)

07 outubro 2011

28 setembro 2011

AMORES CANINOS

A cadela cocker spaniel da E.C. no jardim da Casa das Palmeiras

O Mundo à minha procura, pp. 188-191.

27 setembro 2011

A PIETÁ MAIS BONITA DA NOSSA ESTATUÁRIA

Fotografia tirada em Amarante em 7 de Setembro de 2011. Já não me recordava de que Ruben A. falava disto.

(...) de Amarante, onde era mais raro irmos, misturávamos o olhar para aquelas velharias da praça onde só mais tarde vim a descobrir a Pietá mais bonita da nossa estatuária, ali em plena esquina da ponte - de lá trazíamos as lérias e os foguetes.

O Mundo à minha procura, p. 127.

Casa Andresen



Mas a simetria no Campo Alegre era uma simetria ampliada, um máximo de simetria, tanto no tamanho e altura do edifício, como nas suas janelas e portas. Acima daquilo só a loucura. E a casa, para quem conhecer de íntimo a sua extraordinária história - que não cabe nas páginas de uma autobiografia  - vacilou sempre com os seus personagens numa espécie de loucura humana que lembra em flagrante a Casa dos Manons na Electra de Eugene O´Neill. Nos limites da loucura arquitectónica sentia-se que qualquer coisa de demente teria de habitar aquele casarão.

RUBEN A. - O Mundo à minha procura, Lisboa, Assírio & Alvim, volume I, 2ª edição, 2000, pp. 77 e 78.

24 setembro 2011

"NUNCA NADA É INVENTADO"

Esta casa desmesurada, cheia de gente mas também cheia de lugares vazios e quartos desabitados e fechados, cheia de vozes, silêncios, ressonâncias, mistérios, medos e encantações e assombros aparece assim como o jardim o parque o pinhal e a quinta em muitos os poemas e contos que ao longo dos anos escrevi. É a casa de Hana do conto “Saga”, o jardim do Rapaz de Bronze. E, múltipla, a casa é também “um dos palácios do Minotauro” de que falo num dos meus poemas. É igualmente esta a casa que o meu primo Ruben A. descreve no seu livro O mundo à minha procura: uma óptima descrição, tão exacta e veemente que poderá parecer inventada. Mas nunca nada é inventado.
(Sophia de Mello Breyner Andresen – Excerto de um texto autobiográfico inédito, in Paula Morão, “Nunca nada é inventado”, COLÓQUIO/Letras nº 176, Janeiro/Abril de 2011.)

23 setembro 2011

A QUINTA DO CAMPO ALEGRE

Ruben A. com a prima Sophia e Isabel da Nóbrega, 1958
(fotografia de Biblioteca Nacional Digital, http://www.purl.pt/)

A infância e adolescência, passou-a Sophia na quinta portuense do Campo Alegre, adquirida pelo seu avô Andresen no final do século XIX. "Um território fabuloso", assim a evocaria mais tarde a própria autora. É claro que um exíguo quintalejo pode ser, para uma criança, um território fabuloso. Mas não era bem o caso. Uma parte do que dele resta é hoje o Jardim Botânico do Porto. "Era tão grande a Quinta dos Andresen que o filho primogénito, João Henrique [pai de Sophia], administrador das minas de S. Pedro da Cova, não precisava de galgar os muros para atirar à caça de arribação", escreve Fernando Assis Pacheco, num belo texto intitulado "Sophia, a vida tirada a limpo", que a "Visão" publicou em 1995.
Um dos costumes da casa, como recorda o escritor Ruben A., primo de Sophia, nos seus volumes autobiográficos, era o de se organizar, pelo Natal, um espectáculo protagonizado pelas crianças da família. Foi justamente uma destas celebrações que originou o primeiro contacto de Sophia com a poesia. Tinha três anos e ainda não sabia ler, mas uma criada, desgostosa por ver a menina excluída do elenco de artistas, ensinou-a a recitar "A Nau Catrineta".

(Excerto de um texto de Luís Miguel Queirós)

09 setembro 2011

O Mundo à Minha Procura – 30 de Setembro às 21h00


Busto de Ruben A. no Jardim Botânico do Porto

A propósito desta sua autobiografia, Ruben A. afirmou o seguinte, numa entrevista dada em 1965, ao Diário Popular: "O Mundo à Minha Procura representa uma necessidade urgente de arrumar a minha vida sentimental, de ver a novela que dentro do meu ser transporto. A forma autobiográfica é a mais pura do romance, a criação permanente de um estado de espírito que traz presentes os fantasmas que se acolheram no sótão da sensibilidade”.

Dos três volumes que compõem a obra, vamos ler o primeiro e encerrar o capítulo “Crónicas e Autobiografias” no final deste mês.

30 agosto 2011

BOSCH E A RETÓRICA DO DESEJO





Na visita que se impunha ao MNAA, com a intenção de revisitar o Tríptico de Hieronimus Bosch — As Tentações de Sto Antão (c.1500), desta feita em destaque, pela presença de outras duas obras congéneres, aproveitei para, mais demoradamente, me perder no labirinto daquelas paisagens de ficção delirante.

Esta exposição, realizada em parceria com o Museu Groeninge (Bruges, Bélgica), coloca o Tríptico das Tentações de Santo Antão do MNAA criticamente em confronto com o Tríptico do Juízo Final e o Tríptico das Provações de Job, ambos da colecção do museu de Bruges”.

Estas duas obras serão, uma, provavelmente da mesma escola e a outra de um continuador da sua inventiva. Do confronto que nos é proposto, ressalta naturalmente a superioridade do “nosso” Bosch, uma obra espantosa que ninguém sabe como veio parar a Portugal, a Lisboa, mais propriamente. Mesmo que nos pareça atraente pensar que foi pela mediação de Damião de Góis.
Podemos, no entanto, considerar que este confronto seria um pouco diferente se tivéssemos, por exemplo, O Jardim das Delícias, do Museu do Prado, ou outra pintura igualmente emblemática do mesmo autor, nomeadamente entre as que, para além desta, Filipe II de Espanha (I de Portugal), terá coleccionado e encomendado a Hieronimus Bosch. É aliás interessante notar a surpresa que o rei manifesta a suas filhas (Cartas para Duas Infantas Meninas: Portugal na Correspondência de D. Filipe I a suas Filhas, 1581-1583), descrevendo a grandiosidade e sobretudo as figurações, pantominas e espectáculos, que a procissão anual de Corpus Christi, em Lisboa, incluía. Ele lamenta que os filhos não possam também apreciar vários aspectos originais da procissão, incluindo os diabos, que lhe recordam as figuras de Bosch.
Podemos então pensar que o rei identificava na procissão o mesmo espírito que o fascinava no imaginário que o pintor lhe proporcionava: espírito que marcava talvez um fim de época— o artista traduzia, libertando-os através da obra de arte, os medos, o pavor do desconhecido, que a Idade Média preservava, evitando enfrentá-los.
É como se descobrisse (e nós com ele) que, afinal, o verdadeiro desconhecido mora dentro de cada um e é revelado pela expressão possível da luta insana entre os desejos e a sua realização, entre os desejos e a sua repressão. Sendo que nada disto é humanamente controlável e manifesta-se sempre como um mundo às avessas, eventualmente produto de lucubrações oníricas, lá, onde o inconsciente se revela. Por isso reina uma intensa confusão, como uma perda generalizada de identidade— o pobre santo, no centro da turbulência, parece quase resignado.
A dualidade escatológica, Bem e Mal, Paraíso e Inferno, presente nas três obras, resulta realisticamente misturada, porque aquelas duas faces estão tão interligadas, que uma começa onde a outra parece não ter acabado. Exactamente como na vida. Mesmo que se nos deparem horizontes, comuns aos três Trípticos, de promissoras auroras, a que se sucedem incendiados entardeceres apocalípticos, e as situações a que correspondem— o desejo, a tentação, a luta interior, a superação ou a queda, e a respectiva iconografia, que é como quem diz, os seus demónios. E, enquanto o Juízo Final apresenta um ensaio de redenção, iconograficamente marcado pela centralidade do Cristo Pantocrator, o que encontramos seguramente nestas obras é um discurso pictórico, ficção aberta a muitas leituras; fábula, alegoria, delírio metafórico, lugar comum de muitos imaginários, obra sem data. Para usufruir Hoje.

27 agosto 2011

UM ESCRITO BACALHOEIRO

Os meus romances, no fundo, são franceses, como eu sou, em quase tudo, um francês, - excepto num certo fundo sincero de tristeza lírica que é uma característica portuguesa, num gosto depravado pelo fadinho, e no justo amor do bacalhau de cebolada.

(Eça de Queiroz, de uma carta a Oliveira Martins)

23 agosto 2011

UMA FAINA (AINDA) MAIOR

UMA FAINA (AINDA) MAIOR

Enquanto me afasto até à distância regulamentar do barco-mãe, o imponente lugre, no pequeno Dori que me foi atribuído, remando automaticamente através da bruma matinal, vou remoendo peripécias da vida que me trouxeram até aqui. Lanço a pequena âncora; o ruído surdo do desenrolar da corda sobrepõe-se por instantes ao chape-chape da ondulação contra o casco de madeira da frágil embarcação.
A extensão de mar e a névoa que varre a superfície gelada destas águas setentrionais, onde tudo me é tão alheio e tão estranho, puseram uma distância real e arrepiante de solidão atroz, entre mim e o pequeno mundo de segurança, porto oscilante que não posso perder de vista, o navio de quatro mastros, de velas arriadas, balançando docemente à viração, como se fosse uma miragem.
Por instantes julgo poder ainda distinguir-lhe o nome, impresso lateralmente à proa: “Biblioteca do Bacalhau”.
Pelas abertas do nevoeiro, que ameaça cerrar-se, diviso os meus companheiros de faina— lá está o João Grandão, o dirigente sindical que em segredo nos vai industriando para a luta por melhores condições de trabalho e salários, contra a prepotência dos Henriques Tendeiros... mas o que é isto? Tenho de me despachar, começar a faina, pôr as armações a funcionar! Ali andam, o Carlão, a Cristalina, a Custóia, a Ardete, a Manola e os outros, nos seus botes, já atarefados a lançar as linhas e eu aqui, a perder-me em conjecturas!
Ainda corro o risco de acabar a faina e do cimo da amurada o capitão, o Manuel Tunes, a avaliar a olho a pescaria, me dizer: que é lá isso? Volta para trás, vai pesc(quis)ar mais!

Mas que trapalhada! Afinal, esqueci-me de completar a palamenta; e agora, como é que vou dar conta do recado? Está um frio paralisante; emaranham-se as linhas, o bacalhau pica, come a lula e dá à sola! Não é possível! Qual é a Nossa Senhora ou deus do Olimpo que me acode?
Vejo ao longe os meus companheiros a içarem os grandes peixes estrebuchantes, vão acolchoando o fundo dos barcos, e eu aqui, abandonada da sorte, ou do talento... Mas espera! A linha estremece... é desta! Só pode ser um dos grandes, é puxar, é puxar!
Que grande estrondo!
Acordo em sobressalto... o livro “Uma Crónica...” escorregou e caiu ao chão!

20 agosto 2011

Uma Crónica da Pesca do Bacalhau – 26 de Agosto às 21h00



«… Antes de entrar a bordo, dei uma rápida olhadela à proa e vi o casco cheio de amolgadelas, que, soube depois por experiência própria, eram causadas pelos embates contra os growlers, assim chamados os blocos de gelo flutuantes …» in “Uma Crónica da Pesca do Bacalhau” de Joaquim Rebordão Leitão.

Esta será uma Sessão especial. Por um lado, contamos com a presença do Autor. Por outro, contamos com as habilidades culinárias de alguns leitores, para uma ceia especial em torno do famoso espécimen … 

19 agosto 2011

Na senda de Luísa…

 


No dia 13 de Agosto, pelas 14h30, marcámos encontro no Cais do Sodré. Daí desbravámos caminhos antes percorridos (ou por nós imaginados), pelas personagens do “Primo Basílio”.
Lugares como a Rua do Ferragial de Cima, a Patriarcal, Rua do Moinho de Vento, o Hotel Gibraltar, a Pastelaria Baltreschi ou o Passeio Público, tornaram-se tão familiares como se também nós por lá tivéssemos vivido momentos gloriosos.

Do roteiro, cuidadosamente preparado pelas competentes “Organizações Pandeireta” constaram:

Cais do Sodré e Aterro
Rua do Ferragial (terramoto)
Rua Vítor Cordon
Teatro Nacional S. Carlos (Ópera do Tejo)
Grémio Literário e Hotel Gibraltar
Basílica dos Mártires
Casa Havaneza/Pastelaria Baltreschi
Largo do Loreto/Praça Luís de Camões
Rua da Misericórdia/ Rua Larga de S. Roque
Igreja de S. Roque/ da Misericórdia
Jardim S. Pedro de Alcântara/Convento de S. Pedro de Alcântara
Moinho de Vento
Patriarcal Queimada
Jardim do Príncipe Real (com lanche a rigor)
Praça da Alegria
Passeio Público /Avenida da Liberdade
Convento da Encarnação

No final da visita e chegada a noite, ainda vimos surgir por trás do Castelo S. Jorge uma lua lindíssima, que nos iluminou o caminho para o ágape costumeiro. Foi mais um dia sublime, na vida desta Comunidade. A repetir…