![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiCON8qMB3UhAVrJiWBN7VYWEYwoo9nlt-vwduhuHppGx1-VfNE4k2MIkNEFnNEAqLUnhAgrIC1iDhHiqTu_6tokog-I02IspgvVumw4VfaDm5GXG6svyLaA4ccLXO0MrdInj-0xxJoDfDl/s320/sem+t%C3%ADtulo.bmp)
Num dia cinzento de Janeiro de 1936 Ricardo Reis vai à bilheteira do Teatro Nacional comprar uma poltrona para a peça
Tá Mar de Alfredo Cortez. Dona Palmira Bastos é Ti Gertrudes, Dona Amélia Rey Colaço faz de Maria Bem e Dona Lalande de Rosa. Mas pouco lhe interessa a arte de tão notáveis actrizes ou a excelência da dramaturgia em cena. Ricardo Reis não vai ao teatro pela arte de Talma e de Sara Bernhardt, vai por Marcenda, com quem se quer fazer encontrado, pois sabe de fonte certa que ela ali estará nessa noite, na companhia de seu pai, assistindo à representação da peça sobre a vida dos pescadores da Nazaré.
Ricardo Reis nem repara no elegante edifício neoclássico – a casa de Garrett. Se não tivesse a alma e os sentidos embotados pelo orvalho do amor, daria conta da beleza do pórtico da fachada – de seis colunas jónicas – que suporta um frontão triangular encimado pelas estátuas de Gil Vicente, ao centro, e de Talia e Melpómene nos extremos. E veria no frontão o tímpano esculpido representando Apolo e as Musas. Ricardo Reis, como poeta clássico, é íntimo de todas as musas, especialmente das suas, com os nomes de Neera, Cloe e Lídia.
Antes de ir para o teatro, à noite, ainda sente na pele as delícias carnais de Lídia ( não se trata da musa, mas da criada do hotel); come um bife no Martinho do Rossio, assiste a uma partida de bilhar – tudo coisas tão vulgares, tão comezinhas, que nem parecem de um poeta que trata por tu os metros de Horácio, que convive com as odes de Safo, Píndaro e Alceu.
Um homem na mudança da idade atrás de um rabo de saia de vinte e três anos! Bem lhe chegou Fernando Pessoa numa das suas extraordinárias aparições.
-
Manuel Nunes