Texto -- livre
na forma, rigoroso no conteúdo -- a partir de uma conversa com Urbano Tavares
Rodrigues sobre Ferreira de Castro e a relação entre ambos, em Lisboa, a 6 de Maio
de 2013
O Ferreira de Castro era um homem com
um grande amor à paisagem. Com esse amor ensinou-me a ver Sintra, a conhecer a
região. Encontrávamo-nos muitas vezes num cafezinho ali no largo do palácio da
vila, não me lembro agora do nome. Mais no Verão e na Primavera, que ele tinha
medo do Inverno, agasalhava-se, protegia-se muito.
Também nos juntávamos em Lisboa, mas em
Sintra percorríamos os caminhos e fazíamos o roteiro das fontes. As fontes, do
que me recordo, eram das coisas que mais o apaixonavam na serra. E
visitávamo-las todas. Também as árvores? Pode ser, mas das árvores não sei.
Ele teve outra enorme paixão, a Diana
de Lis. Foi correspondida? Não me lembro.
O Ferreira de Castro… era bom como o
pão. Eu gostava muito dele, admirava-o imenso, quando morreu fartei-me de
chorar. Formámos-lhe uma guarda-de-honra de escritores no funeral: eu, o Mário
Ventura Henriques, a Natália Correia, o João de Melo e outros. Dos que privaram
com ele estão vivos ainda a Agustina e o João de Melo, que foi meu assistente
em Letras, como eu fui de Vitorino Nemésio.
O Ferreira de Castro e os amigos reuniam-se
num café ali no Chiado, creio que se chamava mesmo “Café Chiado”. Os amigos
adoravam-no. Eram mais velhos que nós. Às vezes juntava-me eu, o Armindo
Rodrigues, poeta, e o pessoal das Belas Artes, como o Manuel da Fonseca. Uma
tarde, o Ferreira de Castro estava sentado cá fora, eu ia a passar, era jovem,
muito magro, as raparigas gostavam de mim e umas vieram deitar-me os braços ao
pescoço. Ele já homem maduro, sério, muito discreto, e diz para os amigos: “Não
percebo a sorte deste tipo com as mulheres! Eu compreendo a paixão da carne,
não compreendo é a paixão dos ossos”. Tinha este humor, reservado apenas a um
círculo muito próximo.
Naquela época eu parava mais noutra
tertúlia, a do Abelaira. Uma vez estávamos ali sentados uns sete ou oito, o
José Gomes Ferreira entre eles, tínhamos acabado de escrever um papel contra o
governo e recolhíamos assinaturas. Vemos o Herberto Helder descer o Chiado, pedimos-lhe
a dele; mas, sendo funcionário da Emissora, se assinasse perdia logo o lugar,
era uma situação dramática. E nós compreendemos isso.
Houve um tempo em que acumulei o
trabalho de redação do Diário de Lisboa
e d’O Século, onde o Ferreira de
Castro também foi redator. Às vezes, à noite, n’O Século havia pouco que fazer. Nessas horas vazias de piquete, eu escrevia
contos e romances. Parece-me que ele chegou a fazer o mesmo.
O Cunhal, que também tinha grande
respeito e estima pelo Ferreira de Castro, achou belíssima uma intervenção que eu
fiz um dia no círculo dos intelectuais do Partido Comunista. Reclamou com a
célula, que eu estava ali mal, que não sabiam aproveitar as pessoas, e convidou-me
para ser um dos dirigentes do setor intelectual. E pronto, fiquei a ser. As reuniões
do partido, nessa época, decorriam à noite e eram chatas; só animavam com o
Manuel da Fonseca, contava anedotas, toda a gente se ria. Agora querem que eu continue,
eu continuo.
Era a personificação da delicadeza, o
Ferreira de Castro, fosse entre amigos ou com qualquer admirador na rua. Uma
vez fui pedir-lhe financiamento para um 1º de Maio, já não sei de que ano, e
ele a desculpar-se: “Eh pá, sabes que eu sou completamente antifascista. Mas
não sou comunista…”. Era um grande coração. E eu vim de lá com o dinheiro.
Alguns neorrealistas acusaram-no de
escrever mal. Muito injustamente. A Lã e
a Neve, por exemplo, é um livro belíssimo, aquele que mais se aproxima no
neorrealismo. Pessoalmente, o meu preferido é A Curva da Estrada, decorrido em Espanha, com um protagonista político
assaltado de dúvidas.
Com o neorrealismo, o socialismo quis
evacuar o escritor da obra . Mas o escritor está lá e faz falta.
A literatura do Ferreira de Castro
foi considerada “impura” num período, até hoje, em que se combate toda a obra de
empenhamento social e que deixou cair um pouco no esquecimento os neorrealistas.
Continua esta moda de outros valores, da literatura de consumo fácil, que não presta, que é lixo. Ainda há bons
escritores, isso sim, mas empenhados politicamente, poucos.
Eu combato o que se está a passar
atualmente. Tanto quanto eu posso. Aqui em casa, sem poder sair à rua, escrevo
e o que digo é absolutamente contra este governo, este período de ditadura do
capitalismo ultraliberal, neofascista e sem vergonha, e os negócios sujos por
trás dele. Já combatia quando tomei partido pelo Delgado, e em consequência me
despediram e me silenciaram. Uma Pedrada
no Charco escapou à apreensão graças ao Prémio José Malheiros, da Academia
das Ciências, 1958, prémio que o Ferreira de Castro recebera duas décadas
antes.
A ele pouparam-no, pelo prestígio
internacional. Enquanto escritor, eu não sentia a autocensura que tanto o
atormentava. Nós escrevíamos tudo codificado, usávamos de muita imaginação para
contornar a censura.
E eu tinha uma enorme coragem física.
Da última vez em que estive preso foi terrível. Cinco dias e cinco noites sem
dormir, e quando finalmente pude descansar só conseguia dormir uma hora por
dia. O médico de Caxias garantiu-me que não era fascista, que admirava a minha
obra, tratou-me por doutor e deu-me um valium inútil. Eram dores constantes no
corpo todo, enxaquecas, dores nos dedos. Geralmente os carcereiros são maus, mas
o meu não era. Disse-me que só tinha visto sofrer assim tanto o Pulido Valente
e perguntou-me se podia fazer alguma coisa por mim. “Pode. Está lá fora um saco com o meu nome. Lá
dentro estão uns supositórios analgésicos. Se me trouxer um…”. Não eram autorizados
a isso, claro, mas ele foi buscá-lo. Então dormi. Soltaram-me com receio do
movimento pela minha libertação, criado em 1969, aqui e lá fora. Em França
movimentou o Sartre e outros, em Portugal muitos, entre eles o Ferreira de Castro,
que sempre assumiu posição a meu favor.
Dos poetas, ele conviveu com Ruy Belo
e Herberto Helder, que me lembre. O Ruy Belo escreveu um poema, “Muriel”,
belíssimo. O nome da mulher do Ferreira de Castro, Elena Muriel, mas não
inspirado nela. Muito bonita. Como era também muito bonita a Maria Judite de
Carvalho, minha mulher, mãe da minha filha Isabel. É ela nesta fotografia.
Tinha uns olhos verdes e cabelo louro escuro, que aqui parece ainda mais escuro,
porque ela o pintava. Morreu estupidamente, com um cancro. E custou-me tanto, tanto,
eu tinha um carinho tão grande, um amor tão grande por ela.
Não me lembro de pormenores sobre a relação do Ferreira de Castro com a natureza,
com os rios, o campo ou os animais. Foi há muitos anos e esse tópico não era
importante. O importante eram as questões políticas e sociais. Mas lembro-me das
nossas conversas, das memórias vivas que guardava de Belém-do-Pará e da vida de
sofrimento que lá passou. Falava também muito do parente que não lhe deu apoio,
desse abandono. Lembro-me de ele evocar, com muita ternura, o Amazonas e o
seringal para onde emigrou rapazinho. Também isso me suscitou curiosidade dos
locais cenário d’A Selva, que é um
livro impressionante. E fui lá, percorri-os um a um, fiquei impressionado.
O Ferreira de Castro tinha uma
comunhão quase mística com a natureza, como eu também tenho. Não é exatamente
uma comunhão mística: é quase mística.
AnaCristinaCarvalho / Maio e Agosto de 2013