O livro, por falta de intencional objectividade, é sinuoso. Assim é também a vida, afirmaria certamente a autora. Não é uma narrativa com princípio , meio e fim, mas uma história relativamente mal contada, constantemente a retomar inícios, cheia de inesperados , tiradas surpreendentes, voltas absurdas a raiar ora o ridículo, ora o trágico, onde os protagonistas, não têm protagonismo, controlados por uma natureza de origem misteriosa, pelo legado familiar e social, pelas contingências históricas e sabe-se lá mais o quê.
Assim vive Martinho Nabasco, numa perpétua ronda da noite, em que os feixes luminosos são as mulheres da sua vida, a avó, Maria Rosa, a mãe , Paula, Judite,a mulher e finalmente Josefa,a empregada, que num ímpeto de asseio e despeito supremo, suprime as incógnitas da vida e da tela.
Para mim o mais interessante continua a ser o imponente quadro de Rembrandt, mestre holandês do barroco, que dá o mote e se integra no livro como chave que o desvenda(?): a obra é uma preparação para algo que virá, pleno de vida, de inexactidão, sombras do «chiaroscuro», de personagens que se preparam para um desfecho que virá ou não, de tenentes que se sobrepõem ao capitão, do feixe de luz que é a menina de vestido dourado, com as feições de Saskia, a amada esposa do pintor, falecida pouco antes da composição, que se desloca apressada para o lado oposto da tela, num fluir de vida, com os símbolos da companhia dos arcabuzeiros.Atrás, mal se vislumbrando, em bicos de pés, vendo-se apenas um olho e um boné, está o pintor.
Numa encenação tão cara à teatralidade barroca, a obra parece retratar os bastidores em preparação para a pose , esse último fremir antes do retrato final, solução controversa, em comparação com a sofisticada , mas «preparada »composição de Franz Hals, sua vizinha no Rijksmusem. Retrato para a posteridade das poderosas associações profissionais dos Países Baixos, primeira sociedade burguesa, onde se impõe o indivíduo pelo seu mérito, e como tal se glorifica, mesmo num retrato em conjunto de dirigentes de uma corporação ou membros de uma milícia cívica.
|
The Meagre Company, or The company of Captain Reinier Reael and Lieutenant Cornelis Michielsz Blaeuw (Amesterdão) , Franz Hals, 1633-37 |
|
Os síndicos da guilda dos fabricantes de tecidos, Rembrandt, 1662 |
|
Oficiais e sargentos da Guarda Cívica de Santo Adrianao, Harlem.Franz Hals, 1633 |
|
Lição de anatomia do Dr. Tulp, Rembrandt, 1633 |
Rembrandt dá-nos um momento de vida, assim como Velazquez nas «Meninas» (1656-57), um breve momento numa pose para a posteridade, no momento que antecede a composição ou durante a sua execução. Afinal o que é a vida, senão isso ?
Reprodução com indicações sobre os protagonistas do quadro:
http://edition.cnn.com/2013/04/11/world/europe/rijksmuseum-rembrandt-nightwatch-interactive/#index
Explicação sobre «A Ronda da Noite», inglês:
https://youtu.be/N9jj74aOr_Q
Sobre o livro: uma opinião-
http://comunidade.sol.pt/blogs/cmilhazes/archive/2007/03/16/_2200_A-Ronda-da-Noite_2200_-de-Agustina-Bessa_2D00_Lu_ED00_s.aspx