2023
veio com nuvens negras a pairar sobre o mundo em geral e em particular na
Europa, resultantes de uma grande crise económica e social relacionada ainda
com a pandemia do Corona Vírus e, sobretudo, com a guerra Rússia /Ucrânia, cujo
final não tem fim à vista. Lá mais para o final do ano outra guerra veio adensar
as preocupações e aumentar as angústias globais, com o conflito
Israel/Palestina. O mundo está a mudar e não é para melhor e todos estamos
envolvidos nessa mudança.
Felizmente,
no que toca a esta Comunidade e ao seu amor pelas leituras, a palavra crise não
entra neste cenário e arrancámos para mais 365 dias de bons livros. Antes
disso, realizámos um animado jantar convívio para celebrar a chegada do novo
ano.
Janeiro
chegou muito friorento, mas isso não impediu que 17 leitores estivessem
presentes na BSDR, para mais uma sessão animada em torno da sátira de André
Gide “As Caves do Vaticano”. O primeiro livro do trimestre, que tinha o mote
“Romance e Modernismo”, agradou bastante aos leitores (apenas um não tinha
ainda terminado a leitura) que se divertiram com as personagens criadas pelo
escritor francês. Partindo de um rumor de que o Papa tinha sido sequestrado,
Gide constrói uma trama, em que um grupo de vigaristas tenta ganhar dinheiro
para libertar o Pontífice. Uma rede de personagens algo perturbadoras, cujos
sentimentos e escolhas apontam a uma crítica social e moral, ajudam a construir
uma estrutura narrativa aliciante, que à época entrou na lista negra da igreja
católica. Para nós foi mais uma boa opção de leitura.
Em
Fevereiro fomos à descoberta de um daqueles autores que todos conheciam, mas
que poucos tinham lido: James Joyce e o seu “Retrato do Artista quando Jovem”.
Foi uma leitura corajosa, tendo em conta as dificuldades que a maioria
encontrou pelo caminho. No entanto, a história (que todos consideram
autobiográfica) de crescimento do escritor, que acompanha a sua infância até à
idade de jovem adulto, agarrou-nos e não nos fez desistir. Resistimos a todos
os considerandos políticos irlandeses e à longa ambiência da educação jesuíta.
Os contributos dados pelos leitores na sessão, acabaram por tornar mais lúcida
e compreensível a apreciação do romance. Tanto que, houve quem começasse a
perfilar a leitura de “Ulisses”. No final ficou uma questão: terá Fernando
Pessoa lido James Joyce? Algumas pistas no romance, justificavam a pergunta.
Uma investigação posterior confirmou o facto, mas com aparente pouco entusiasmo
(na leitura do Pessoa, não na investigação). A sessão contou com 20 presenças e
5 que não tiveram tempo de concluir a leitura.
O
trimestre terminou com mais uma densa narrativa introspetiva. O "Jogo
da Cabra Cega" de José Régio, tornou longo o mês de Março para a maioria
dos leitores. Um romance, também ele autobiográfico, que deixou na maior parte
dos leitores uma impressão de cansaço, devido a uma procura do “eu” muito
conturbada e por vezes confusa. Régio não foi um escritor de agrado global, mas
teve o mérito de ocupar animadamente as duas horas e meia da sessão, levantando
muitas questões pertinentes, sentimentos diferentes e reações diversas à
leitura. 18 presenças, sendo que, 4 dos participantes, não acabaram a leitura.
O segundo trimestre chegou
sob o mote “Romance e Contos de Autores Portugueses”,
iniciando em Abril com “Os Amantes e outros Contos” de David
Mourão-Ferreira. Os contos foram do agrado geral, embora quase todos
reconhecessem alguma dificuldade em seguir o labiríntico pensamento dos mesmos
e a utilização frequente do fantástico. Uma escrita escorreita, elegante, delicada
e poética foram também alguns dos adjetivos usados pelos leitores. Outros
sentiram a leitura como uma espécie de flashes contínuos, a proporcionarem uma
experiência cinematográfica em forma de escrita. Estiveram presentes 20 leitores, sendo que 2
não leram o livro.
Em
Maio, foi a vez do romance de Manuel da Fonseca, “Cerromaior”. Obra do
neorrealismo (apesar de questionado pelos puristas do estilo), centra-se numa
imaginária vila alentejana, retratando o espaço social, ético e político dos
anos 30/40. Da família de latifundiários, classe social dominante, a uma GNR
aliada aos poderosos, tudo se conjuga para a exploração do proletariado rural
que vive numa constante miséria humana onde tudo falta e nada parece ter
futuro. Há, no entanto, alguma réstia de esperança, no facto de Adriano,
personagem principal do romance, ter um percurso de crescimento e evolução que
o levam a questionar as injustiças sociais e a falta de dignidade existente no
tratamento dado aos trabalhadores. 20 presenças e 3 leitores que não leram o romance.
A terminar o segundo trimestre, Junho trouxe-nos “Sombras da Raia” de Nuno Franco Pires. A presença do escritor que amavelmente aceitou o nosso convite, trouxe-nos uma outra dinâmica, acrescentando informação e muitas outras histórias relacionadas com o romance. Começando com o início da sangrenta guerra civil espanhola (que provocou centenas de mortos em Badajoz), acompanhamos uma história de gerações que atravessa a vida de 3 famílias da raia, entre 1936 e 1918. Entre Badajoz e Elvas cruzam-se os destinos de Clara, Miguel e Inês. Através deles descobrimos uma teia de enganos e segredos, há muito escondidos pelas suas famílias. Um enredo bem trabalhado, com todo um naipe de personagens fortes, dá-nos ainda a conhecer, a evolução da doçaria mais conhecida da região, a famosa ameixa de Elvas. Ficou em aberto a organização de uma deslocação a Elvas, para seguirmos os roteiros que nos são dados a conhecer no romance. 22 presenças e 3 que não leram.
Julho
chegou e com ele demos início ao terceiro trimestre sobre o mote “Romances de Férias”.
“Niketche: Uma História de Poligamia”, de Paulina Chiziane, foi o livro
escolhido. Uma voz feminina a refletir sobre a condição da mulher moçambicana e
a vinculação e submissão a uma sociedade patriarcal muito enraizada, contra a
qual é difícil lutar. Uma escrita fluída, por vezes lírica e até bem humorada,
a tratar um tema delicado. Uma sessão com bons contributos dos 19 leitores
presentes, em que apenas 1 não leu o romance em apreço.
A
fechar o mês de Julho e ainda no rescaldo do livro de Maio, um grupo de
leitores fez uma visita a Vila Franca de Xira, com particular destaque para o Museu
do Neo-Realismo que embora já conhecido pela maior parte da Comunidade,
justifica sempre a visita.
Agosto
trouxe “Os Anos” de Annie Ernaux, prémio Nobel de 2022. Uma autobiografia
num registo muito fotográfico, escrita num formato de pequenos textos que
parecem retirados de cadernos diários. Embora com a sua visão muito pessoal,
pode dizer-se que é também uma crónica da segunda metade do séc XX focada na
vivência francesa, apesar de algumas incursões internacionais. Foi do agrado geral
das 20 pessoas presentes, em que 2 não leram o livro.
Em
Setembro lemos a “A Trilogia de Nova Iorque” de Paul Auster. Três
histórias um pouco sombrias, que nos levam pelo fascinante e misterioso
submundo nova-iorquino num formato muito cinematográfico. Quem conhece bem e
gosta deste escritor, conseguiu enredar-se facilmente nos labirintos criados
por si. Quem teve um primeiro contacto com a sua escrita, sentiu alguma
resistência e dificuldade na leitura. 19 pessoas presentes e 6 que não leram.
O
último trimestre no ano, cujo mote foi “Outros Géneros”, trouxe-nos em Outubro
um livro diferente, mas muito apreciado pela generalidade dos leitores: “O
Infinito num Junco” de Irene Vallejo. Uma obra que anda entre o ensaio, o
relato ou mesmo uma tese, acaba por ser um romance que nos leva numa longa
viagem através do tempo e do espaço, de um objecto criado para transportar as
palavras. É um livro sobre a história e a evolução dos livros, da antiguidade
clássica até aos nossos dias. 17 pessoas presentes e 4 que não leram.
Ainda
em Outubro e na rota do livro lido em Junho, “As Sombras da Raia”, um pequeno
grupo desta Comunidade rumou num Domingo até Elvas, tendo seguido os passos de
muitas das personagens daquele romance. Como sempre, ficaram memórias boas que
vão construindo a história desta Comunidade.
Em
Novembro abordámos o teatro, através de uma das tragédias Shakespeariana: “O
Rei Lear”. Lear, o monarca que renuncia ao poder, com a intenção de dividir o
seu reino pelas três filhas, em função do amor que estas lhe devotam. Gloucester,
um conde que vê um dos filhos trair o outro para usurpar o poder. Vaidade,
lisonja, adulação, ódio, traição, mentira, loucura fingida, caminham lado a
lado com amor filial, razão, lealdade, fidelidade, dever e generosidade. A
natureza humana no seu pior e no seu melhor. Uma tragédia, com raios de
comédia, sobretudo através das intervenções do Bobo da corte. Apesar da maior
parte dos leitores preferir ver teatro a ler teatro, o livro foi bem recebido e
do agrado de todos, proporcionando uma sessão agradavelmente participada. 27
presenças e 4 pessoas que não leram.
Para terminar o ano numa
forma mais lúdica e poética, continuando no tema – outras leituras-, Dezembro
trouxe com ele a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen e o livro “Dual”.
Como diz Eduardo Lourenço no prefácio deste livro, “… Sophia foi musa de si
mesma e talvez a isso se refira o misterioso e luminoso título Dual, dualismo
de natural fusão de duas faces de si mesma…”. A casa, Delphos, o mar, os nossos
poetas, a mitologia grega e a memória, entre outros, espelham-se ao longo da
poética de Dual. No início da sessão questionava-se se a escolha de um livro de
poesia teria sido acertada e que tipo de discussão daí poderia surgir. Os 21
leitores presentes (onde apenas 2 não leram) não desiludiram e todos tiveram
algo a dizer e também a aprender, com esse Universo único que é Sophia.
E foi assim este ano de
leituras partilhadas, num entusiasmo permanente dos muitos leitores que
mensalmente marcaram presença nestas sessões. A Comunidade está de boa saúde e
tem crescido com a chegada de novos leitores ao longo do ano. Como sempre, cumpre-nos agradecer à
Biblioteca de São Domingos de Rana e aos seus responsáveis, a cedência do
espaço, a sua disponibilidade e apoio imprescindível.
Bom Ano 2024!