Na visita que se impunha ao MNAA, com a intenção de revisitar o Tríptico de Hieronimus Bosch — As Tentações de Sto Antão (c.1500), desta feita em destaque, pela presença de outras duas obras congéneres, aproveitei para, mais demoradamente, me perder no labirinto daquelas paisagens de ficção delirante.
“Esta exposição, realizada em parceria com o Museu Groeninge (Bruges, Bélgica), coloca o Tríptico das Tentações de Santo Antão do MNAA criticamente em confronto com o Tríptico do Juízo Final e o Tríptico das Provações de Job, ambos da colecção do museu de Bruges”.
Estas duas obras serão, uma, provavelmente da mesma escola e a outra de um continuador da sua inventiva. Do confronto que nos é proposto, ressalta naturalmente a superioridade do “nosso” Bosch, uma obra espantosa que ninguém sabe como veio parar a Portugal, a Lisboa, mais propriamente. Mesmo que nos pareça atraente pensar que foi pela mediação de Damião de Góis.
Podemos, no entanto, considerar que este confronto seria um pouco diferente se tivéssemos, por exemplo, O Jardim das Delícias, do Museu do Prado, ou outra pintura igualmente emblemática do mesmo autor, nomeadamente entre as que, para além desta, Filipe II de Espanha (I de Portugal), terá coleccionado e encomendado a Hieronimus Bosch. É aliás interessante notar a surpresa que o rei manifesta a suas filhas (Cartas para Duas Infantas Meninas: Portugal na Correspondência de D. Filipe I a suas Filhas, 1581-1583), descrevendo a grandiosidade e sobretudo as figurações, pantominas e espectáculos, que a procissão anual de Corpus Christi, em Lisboa, incluía. Ele lamenta que os filhos não possam também apreciar vários aspectos originais da procissão, incluindo os diabos, que lhe recordam as figuras de Bosch.
Podemos então pensar que o rei identificava na procissão o mesmo espírito que o fascinava no imaginário que o pintor lhe proporcionava: espírito que marcava talvez um fim de época— o artista traduzia, libertando-os através da obra de arte, os medos, o pavor do desconhecido, que a Idade Média preservava, evitando enfrentá-los.
É como se descobrisse (e nós com ele) que, afinal, o verdadeiro desconhecido mora dentro de cada um e é revelado pela expressão possível da luta insana entre os desejos e a sua realização, entre os desejos e a sua repressão. Sendo que nada disto é humanamente controlável e manifesta-se sempre como um mundo às avessas, eventualmente produto de lucubrações oníricas, lá, onde o inconsciente se revela. Por isso reina uma intensa confusão, como uma perda generalizada de identidade— o pobre santo, no centro da turbulência, parece quase resignado.
A dualidade escatológica, Bem e Mal, Paraíso e Inferno, presente nas três obras, resulta realisticamente misturada, porque aquelas duas faces estão tão interligadas, que uma começa onde a outra parece não ter acabado. Exactamente como na vida. Mesmo que se nos deparem horizontes, comuns aos três Trípticos, de promissoras auroras, a que se sucedem incendiados entardeceres apocalípticos, e as situações a que correspondem— o desejo, a tentação, a luta interior, a superação ou a queda, e a respectiva iconografia, que é como quem diz, os seus demónios. E, enquanto o Juízo Final apresenta um ensaio de redenção, iconograficamente marcado pela centralidade do Cristo Pantocrator, o que encontramos seguramente nestas obras é um discurso pictórico, ficção aberta a muitas leituras; fábula, alegoria, delírio metafórico, lugar comum de muitos imaginários, obra sem data. Para usufruir Hoje.