UMA FAINA (AINDA) MAIOR
Enquanto me afasto até à distância regulamentar do barco-mãe, o imponente lugre, no pequeno Dori que me foi atribuído, remando automaticamente através da bruma matinal, vou remoendo peripécias da vida que me trouxeram até aqui. Lanço a pequena âncora; o ruído surdo do desenrolar da corda sobrepõe-se por instantes ao chape-chape da ondulação contra o casco de madeira da frágil embarcação.
A extensão de mar e a névoa que varre a superfície gelada destas águas setentrionais, onde tudo me é tão alheio e tão estranho, puseram uma distância real e arrepiante de solidão atroz, entre mim e o pequeno mundo de segurança, porto oscilante que não posso perder de vista, o navio de quatro mastros, de velas arriadas, balançando docemente à viração, como se fosse uma miragem.
Por instantes julgo poder ainda distinguir-lhe o nome, impresso lateralmente à proa: “Biblioteca do Bacalhau”.
Pelas abertas do nevoeiro, que ameaça cerrar-se, diviso os meus companheiros de faina— lá está o João Grandão, o dirigente sindical que em segredo nos vai industriando para a luta por melhores condições de trabalho e salários, contra a prepotência dos Henriques Tendeiros... mas o que é isto? Tenho de me despachar, começar a faina, pôr as armações a funcionar! Ali andam, o Carlão, a Cristalina, a Custóia, a Ardete, a Manola e os outros, nos seus botes, já atarefados a lançar as linhas e eu aqui, a perder-me em conjecturas!
Ainda corro o risco de acabar a faina e do cimo da amurada o capitão, o Manuel Tunes, a avaliar a olho a pescaria, me dizer: que é lá isso? Volta para trás, vai pesc(quis)ar mais!
Mas que trapalhada! Afinal, esqueci-me de completar a palamenta; e agora, como é que vou dar conta do recado? Está um frio paralisante; emaranham-se as linhas, o bacalhau pica, come a lula e dá à sola! Não é possível! Qual é a Nossa Senhora ou deus do Olimpo que me acode?
Vejo ao longe os meus companheiros a içarem os grandes peixes estrebuchantes, vão acolchoando o fundo dos barcos, e eu aqui, abandonada da sorte, ou do talento... Mas espera! A linha estremece... é desta! Só pode ser um dos grandes, é puxar, é puxar!
Que grande estrondo!
Acordo em sobressalto... o livro “Uma Crónica...” escorregou e caiu ao chão!
2 comentários:
Um belo sonho em forma de prosa. Nos sonhos há lugar para tudo, até
para essas Cristalina, Custóia, Ardete e Manola saindo nos seus dóris para fisgarem os bacalhaus. Uma companha mista, coisa deveras interessante... O capitão Manuel Tunes ficaria entusiasmado com a ideia. Quanto ao dirigente sindical João Grandão, nem vale a pena falar...
Ora, ora, quem diria que um belo sonho a roçar o pesadelo, daria tão inspirada prosa !!!
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