A história que hoje te trago, ouvi-a eu contar num país tão distante que não penso lá voltar nunca mais. É uma narrativa sem lugar nem tempo definidos, capaz de passar-se no eterno presente da vida. Poderás compreendê-la melhor se te acontece por vezes abrires uma janela, ou até uma gaveta, para nada, e pensares num amigo, sabendo, com uma certeza irredutível, que está triste, ainda que ele nada te tenha dito de si mesmo.
O protagonista desta história é um poeta amargurado pela perda do Amor. O seu desgosto é tão intenso e a sua tristeza tão profunda, que tudo à sua volta, montanhas e vales, lagos e rios, cidades e estradas, se encontra mergulhado numa persistente e soturna obscuridade.
Ora o Génio do Lugar, conhecedor da situação e farto de ouvir as reclamações dos outros habitantes, resolve propor ao Poeta uma solução para o seu problema. Para lhe devolver a alegria, ele vai convocar os representantes mais notáveis dos elementos da Natureza, que lhe podem oferecer, à escolha, os Dons mais preciosos da Criação, de que são portadores.
O Poeta, no seu desalento, aceita o desafio, e logo a Montanha se ilumina dos mais espantosos cambiantes das cores da terra, das cintilações douradas e verdes dos maçiços florestais que modelam harmoniosamente as onduladas e suaves encostas, serpenteando até aos afloramentos rochosos dos escarpados cumes, onde cintilam as neves eternas.
— Compreendo, Montanha— diz o Poeta, vencido o fascínio do primeiro instante— que me ofereces o teu abrigo, com todas as prodigalidades de que foste dotada. A paisagem de que posso usufruir é a coisa mais bela que existe na Terra. Nunca me cansaria, pois a mudança faz parte do teu carácter. No entanto, tenho de recusar a tua oferta, porque não podes, com todo o teu poder, substituir o meu Amor.
Então, escuras e espessas nuvens, trazidas pelo vento, ocultam a Montanha, que desaparece, desgostosa, da vista do Poeta.
O mesmo vento, de início impetuoso, acalma-se e transforma-se numa brisa suave, que murmura, numa música envolvente e irresistível, poemas maravilhosos:
Dá-me rosas, rosas, e lírios também...
O Poeta chora, quereria, sim, até aceitava ficar para sempre mergulhado no inefável murmúrio poético,
Mas por mais rosas e lírios que me dês, / Eu nunca acharei que a vida é bastante. / Faltar-me-á sempre qualquer coisa, / Sobrar-me-á sempre de que desejar, / Como um palco deserto.
Assim rejeitada, a brisa retira-se e uma grande calma cai sobre a paisagem em transformação.
É a vez do Sol se apresentar em todo o seu esplendor de fogo.
— O que tenho para te oferecer é único e irrecusável— diz o Sol— pois eu tenho o poder de afastar todas as trevas, de acabar com o frio, de fazer renascer da morte as sementes da terra. Prometo aquecer-te o corpo e a alma para sempre, e devolver-te à vida, à alegria.
O Poeta hesita, porque sob a luz irradiante e o calor ameno, a paisagem transfigura-se numa promessa de fecundidade e o seu coração parece querer expandir-se.
Entretanto, o tempo passa, o Poeta não é capaz de responder. O Sol impacienta-se, o calor aumenta e a paisagem transforma-se num deserto de terra calcinada a perder de vista. O poeta percebe que a situação é sem apelo, a sede começa a ser insuportável e ele caminha a custo sob o calor inclemente em busca de um abrigo. Passam-se horas; as condições físicas do poeta tornam-se insustentáveis e ele desfalece sobre a areia ardente.
De um delírio intrincado de luzes e escuridão surge um rosto amável. O Poeta não sabe se sonha ou se é a realidade que lhe sorri, que o reconforta, que o trata.
Tudo ali é desconhecido; mas é nova, acima de tudo, aquela sensação de ser objecto de dedicação, de ser alguém que importa de forma especial para o outro, que nada pede em troca.
— O meu nome é
Mariana, e tu és o
Simão, lembras-te? Sei o que perdeste, e também sei que nada até agora pôde restituir-te a alegria do Amor.
—
Mariana, tu salvaste-me do deserto, noite após noite tens velado à minha beira, dás-me tudo o que tens, mal me conheces e eu reconheço, porque o sinto, que me amas. Mas,
Mariana, nunca poderei dar-te mais do que gratidão e reconhecimento, porque tu não és o meu Amor.
Mariana e
Simão choram, irmanados na dor da realidade irredutível dos sentimentos. Fora, chove torrenciamente: também a natureza chora uma infinita tristeza.
A torrente de água forma um pequeno dilúvio, que transforma em rio caudaloso aquela porção de deserto. De
Mariana e
Simão nada mais se virá a saber. Mas no eterno presente, quem contemple o mar pelo fim da tarde, numa qualquer foz de rio, ou simplesmente abra uma janela sem pensar, pode ficar cativo de uma paisagem interior, onde os rios de lágrimas alimentam para sempre o mar sem destino da ilusão e do amor desencontrado.
S. Domingos de Rana, 2 de Abril de 2012Nota: Lê-se Espingardas e Música Clássica, de Alexandre Pinheiro Torres, nosso guia para Amarante, e que nos permite, de muitas formas, continuar a influência camiliana, alimentada na recente leitura de A Brazileira... Entre outras, temos ainda e sempre a presença de Fernando Pessoa, ainda que através de Álvaro de Campos, o qual veio a lume a propósito de uma visita ao navio Sagres... Acreditem: não há coincidências. Há outra coisa qualquer.