Foto minha. Cegonhas na Aldeia da Luz
"... Não vás. E não fui. Ainda que
todo o dia, toda a vida, tivesse esperado por aquele instante, único entre
todos os instantes, ainda que tivesse imaginado o mundo ao pormenor depois da
fronteira pequena daquele instante, não fui. Não vás. Ainda que se tivesse
levantado uma cegonha a planar como um abraço que nunca demos, mas que julgámos
possível, ainda que todo eu a tenha olhado, ainda que lhe tenha dito espera por
mim, hoje vou buscar-te, ainda que o crepúsculo nos tenha visto onde só vão os
mais sinceros, entrei neste quarto, e deitei-me nesta cama, e deixei que o
instante único passasse indistinto e que toda a minha vida se tornasse um lugar
penoso de instantes desperdiçados, instantes desperdiçados antes do tempo,
durante o fastidioso do seu tempo, depois da memória má do seu tempo, no tédio
de não ter e não esperar nada. Não vás. E não fui..."
in "Nenhum Olhar" de José Luís Peixoto
3 comentários:
Estou a adorar cada bocadinho deste livro.
Está maravilhosamente escrito, mas é duma tristeza... tristeza que reconheço de alguns cantos do meu Alentejo.
Ouvi dizer, já não sei a quem, que um livro só tem sentido quando responde às perguntas que o leitor tem dentro de si.
Interessante passagem, esta.
Nenhum olhar, um livro de todos os olhares. Logo, também dos nossos.
Enquanto leio penso sobre o que se pode dizer de uma leitura que a si mesma se diz, sem deixar margem, como uma taça no limite de transbordar, ou um rio, mas por si mesmo, sem apelo a qualquer participação. Esse texto é uma manifestação de sabedoria acabada. Não conheço o autor, mas é um candidato a demiurgo. Acho que vou ficar calada e talvez me custe ouvir algum comentário forçado, não sei, hoje sinto-me menos esquisita, há um universo onde os esquisitos também encaixam, debaixo de Nenhum Olhar.
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