A abrir
"Nasci em Paris, em 1910. O meu pai era
pessoa branda e indolente, uma salada de genes rácicos: cidadão suíço de mista
ascendência franco-austríaca, com umas gotas do Danúbio nas veias. Daqui a um
instantinho mostrar-lhes-ei alguns deliciosos postais ilustrados, de um azul
muito brilhante. Era dono de um luxuoso hotel da Riviera. O seu pai e dois avós
tinham vendido vinho, jóias e seda, respectivamente. Aos trinta anos desposou
uma jovem inglesa, filha de Jerome Dunn, o alpinista, e neta de dois párocos de
Dorset, especialistas em assuntos obscuros - paleopedologia, um, e harpas eólicas,
outro. A minha muito fotogênica mãe morreu num singular acidente (piquenique,
faísca) quando eu tinha três anos e, exceptuando uma bolsa de cálida ternura no
mais negro passado, nada subsiste dela nos vales e fissuras da memória, sobre
os quais, se ainda podeis suportar o meu estilo (estou a escrever vigiado), o
sol da minha infância deixou de brilhar: todos vós conheceis, certamente, esses
fragrantes restos de dia suspensos, com os mosquitos, sobre alguma sebe em
flor, ou subitamente penetrados e atravessados pelo caminhante, no sopé de um
monte, no crepúsculo estival; um calor de velo macio, mosquitos dourados..."
In "Lolita" de Vladimir Nabokov