Entre os membros da nossa Comunidade, a leitura de Se numa Noite de Inverno um Viajante, de Italo Calvino, gerou perplexidades, incompreensões, até alguma frustração por se tratar de um livro com menos possibilidades de apreensão por parte de leitores que normalmente se entregam à leitura por puro prazer.
Concordo que é um livro difícil. Para
qualquer um de nós. Mas registo aquilo que me foi dito por uma leitora à saída
da sessão: «Não podemos querer só livros fáceis».
Livro que não é fácil e, no entanto,
é um livro que, entre outras coisas, reflecte sobre os leitores e a leitura.
Somos leitores, lemos, é um livro para nós.
Esta obra de Calvino desenvolve-se em
dois planos: primeiro plano, uma história que avança em torno dos livros e das
pessoas que os lêem (leitores românticos ou ingénuos, leitores académicos, leitores
profissionais, etc.), assim como dos dispositivos crítico-literários que lhes
são inerentes, como a legitimação da literatura pela Universidade, por
investigadores e críticos, e ainda tudo o que ao livro diz respeito, como a
edição, a tradução, a contrafacção, a censura, etc.; e, segundo plano, um
conjunto de dez narrativas intercaladas nos capítulos, cada uma ao seu estilo,
que podem ser lidas como contos.
A leitura destes dez “contos” pode
ser feita por qualquer leitor, não é exigida uma qualificação especial. O
leitor incomodado com as aventuras de Ludmilla, de Hermes Marana ou do
professor Uzzi-Tuzii poderá sempre
entregar-se à leitura das dez narrativas, por mero prazer, com a vantagem
acrescida de serem todas estilisticamente diferentes e, portanto,
diferentemente enriquecedoras.
Ouvimos dizer que Se numa Noite de Inverno um Viajante é
um puzzle, ora muitos de nós até gostamos de puzzles, dêmo-nos ao trabalho de o
compor.
Queria deixar mais umas notas
relativas à minha intervenção na sessão, na qual posso não ter sido explícito.
Quanto citei uma prática que foi corrente na Faculdade de Letras para avaliação
dos alunos, que era a de se apresentar um texto para interpretação sem o nome
do autor, com vista a concentrar a análise dos discentes somente nos processos
de criação de linguagem, sem atender à biografia respectiva, não quis dizer que
o livro de Calvino fosse só para quem tivesse frequentado a dita faculdade ou
outra similar.
Matérias tratadas no livro são estas
da “intenção do autor” e do “biografismo” de que a crítica usou e abusou e da
qual discordou a corrente estruturalista (que valoriza a estrutura da
linguagem) e a semiótica (a ciência dos
signos, logo também dos signos linguísticos).
Dizia-se: ele, autor, escreveu isto
porque é comunista, católico, homossexual ou outra coisa qualquer; ele, autor,
foi abandonado pela mãe, daí tratar mal as personagens femininas nos seus
romances; ele, autor, pertence a uma minoria étnica, foi perseguido na
juventude, daí a revolta existente nos seus textos, etc., etc.
Este não é o caminho seguro para
abordar um texto literário, embora possamos segui-lo com o devido cuidado. Tudo
isto levou a que no final dos anos 60, em artigo que se tornou célebre, Roland
Barthes tenha advogado a “morte do autor”. O autor desapareceria ao acabar o
seu texto, não mais se falaria dele, emergindo a figura do leitor, a razão
última do labor autoral. Com o desenvolvimento da “teoria da recepção”, o papel
do leitor passou a constituir uma função determinante no processo literário,
como a entidade que actualiza ou “reescreve” o texto, que lhe dá sentido.
A propósito da “morte do autor”,
veja-se o que Silas Flannery, escritor angustiado, diz no seu diário (Oitavo
capítulo do livro de Calvino): «O estilo, o gosto, a filosofia pessoal, a
subjectividade, a formação cultural, a experiência vivida, a psicologia, o
talento, os truques do ofício: todos os elementos que fazem o que escrevo poder
reconhecer-se como meu, acho-os uma jaula a limitar as minhas possibilidades.
Se fosse apenas uma mão, uma mão decepada a empunhar uma caneta e escrever…
Quem moveria esta mão? A multidão anónima? O espírito dos tempos? O
inconsciente colectivo? Não sei.»
Foi com essa «mão decepada» que Italo
Calvino escreveu o seu livro. Com ela escreveu os dez contos que sendo dele, e
só dele, são, no entanto, de dez autores diferentes. É preciso conhecer-lhes a
biografia para gostarmos deles?
Costumo dar um exemplo que não é meu,
mas copiado de algum lado de que já não me recordo: nada sabemos da vida de
Shakespeare, dos seus gostos, ânimos ou desânimos, mas tal não nos tira o
imenso prazer de ler as suas obras.
Também nada sei do tal Takakumi
Ikoka, conterrâneo fictício do próximo autor de visita à nossa Comunidade (se é
fictício, como posso saber alguma coisa dele?), mas garanto-vos que gostei
muito de ler o seu texto No tapete de
folhas iluminado pela lua. Foi uma espécie de aperitivo para o romance de
Murakami que, provavelmente, não será como o daquele japonês um «romance da
perversão». No entanto, se for, não me importo nada.
E pronto, por aqui me fico. Laus Deo.