25 setembro 2021

O VIAJANTE DE CALVINO

 

Entre os membros da nossa Comunidade, a leitura de Se numa Noite de Inverno um Viajante, de Italo Calvino, gerou perplexidades, incompreensões, até alguma frustração por se tratar de um livro com menos possibilidades de apreensão por parte de leitores que normalmente se entregam à leitura por puro prazer.

Concordo que é um livro difícil. Para qualquer um de nós. Mas registo aquilo que me foi dito por uma leitora à saída da sessão: «Não podemos querer só livros fáceis».

Livro que não é fácil e, no entanto, é um livro que, entre outras coisas, reflecte sobre os leitores e a leitura. Somos leitores, lemos, é um livro para nós.

Esta obra de Calvino desenvolve-se em dois planos: primeiro plano, uma história que avança em torno dos livros e das pessoas que os lêem (leitores românticos ou ingénuos, leitores académicos, leitores profissionais, etc.), assim como dos dispositivos crítico-literários que lhes são inerentes, como a legitimação da literatura pela Universidade, por investigadores e críticos, e ainda tudo o que ao livro diz respeito, como a edição, a tradução, a contrafacção, a censura, etc.; e, segundo plano, um conjunto de dez narrativas intercaladas nos capítulos, cada uma ao seu estilo, que podem ser lidas como contos.

A leitura destes dez “contos” pode ser feita por qualquer leitor, não é exigida uma qualificação especial. O leitor incomodado com as aventuras de Ludmilla, de Hermes Marana ou do professor Uzzi-Tuzii  poderá sempre entregar-se à leitura das dez narrativas, por mero prazer, com a vantagem acrescida de serem todas estilisticamente diferentes e, portanto, diferentemente enriquecedoras.

Ouvimos dizer que Se numa Noite de Inverno um Viajante é um puzzle, ora muitos de nós até gostamos de puzzles, dêmo-nos ao trabalho de o compor. 

Queria deixar mais umas notas relativas à minha intervenção na sessão, na qual posso não ter sido explícito. Quanto citei uma prática que foi corrente na Faculdade de Letras para avaliação dos alunos, que era a de se apresentar um texto para interpretação sem o nome do autor, com vista a concentrar a análise dos discentes somente nos processos de criação de linguagem, sem atender à biografia respectiva, não quis dizer que o livro de Calvino fosse só para quem tivesse frequentado a dita faculdade ou outra similar.

Matérias tratadas no livro são estas da “intenção do autor” e do “biografismo” de que a crítica usou e abusou e da qual discordou a corrente estruturalista (que valoriza a estrutura da linguagem)  e a semiótica (a ciência dos signos, logo também dos signos linguísticos).

Dizia-se: ele, autor, escreveu isto porque é comunista, católico, homossexual ou outra coisa qualquer; ele, autor, foi abandonado pela mãe, daí tratar mal as personagens femininas nos seus romances; ele, autor, pertence a uma minoria étnica, foi perseguido na juventude, daí a revolta existente nos seus textos, etc., etc.

Este não é o caminho seguro para abordar um texto literário, embora possamos segui-lo com o devido cuidado. Tudo isto levou a que no final dos anos 60, em artigo que se tornou célebre, Roland Barthes tenha advogado a “morte do autor”. O autor desapareceria ao acabar o seu texto, não mais se falaria dele, emergindo a figura do leitor, a razão última do labor autoral. Com o desenvolvimento da “teoria da recepção”, o papel do leitor passou a constituir uma função determinante no processo literário, como a entidade que actualiza ou “reescreve” o texto, que lhe dá sentido.

A propósito da “morte do autor”, veja-se o que Silas Flannery, escritor angustiado, diz no seu diário (Oitavo capítulo do livro de Calvino): «O estilo, o gosto, a filosofia pessoal, a subjectividade, a formação cultural, a experiência vivida, a psicologia, o talento, os truques do ofício: todos os elementos que fazem o que escrevo poder reconhecer-se como meu, acho-os uma jaula a limitar as minhas possibilidades. Se fosse apenas uma mão, uma mão decepada a empunhar uma caneta e escrever… Quem moveria esta mão? A multidão anónima? O espírito dos tempos? O inconsciente colectivo? Não sei

Foi com essa «mão decepada» que Italo Calvino escreveu o seu livro. Com ela escreveu os dez contos que sendo dele, e só dele, são, no entanto, de dez autores diferentes. É preciso conhecer-lhes a biografia para gostarmos deles?

Costumo dar um exemplo que não é meu, mas copiado de algum lado de que já não me recordo: nada sabemos da vida de Shakespeare, dos seus gostos, ânimos ou desânimos, mas tal não nos tira o imenso prazer de ler as suas obras.

Também nada sei do tal Takakumi Ikoka, conterrâneo fictício do próximo autor de visita à nossa Comunidade (se é fictício, como posso saber alguma coisa dele?), mas garanto-vos que gostei muito de ler o seu texto No tapete de folhas iluminado pela lua. Foi uma espécie de aperitivo para o romance de Murakami que, provavelmente, não será como o daquele japonês um «romance da perversão». No entanto, se for, não me importo nada.

E pronto, por aqui me fico. Laus Deo.

6 comentários:

Custódia C. disse...

As sessões de grande discussão são normalmente mais enriquecedoras. Terá sido certamente o caso.
Não consegui ir, apesar de ter lido o livro que, também para mim, foi de leitura difícil...

Unknown disse...

Os livros cuja leitura se torna fácil ou difícil são sempre complementados com os comentários que invariavelmente nos enriquecem e muitas vezes alteram a primeira impressão com que ficámos deles . Par mim não tem sido possível usufruir completamente desta segunda valência devido Às más condições acústicas da sala e à minha crescente surdês , ou às duas coisas. Um abraço.

Maria Amélia disse...

Todas as sessões são diferentes, ao sabor dos livros lidos, ou antes, ao sabor das impressões por eles causadas nos leitores. Neste caso, ficou-me a sensação (que pode ser só minha) de que uma, pelo menos aparente, falta de entendimento-quase-rejeição do texto correspondia a uma certa falta de maturidade nossa como leitores ou, eventualmente, uma preguiça mental que nos prega a partida a quase todos a partir de certa altura (ou idade?). Talvez por isso, ouvi com muito agrado a interpretação do Manuel e agradeço o presente post. Se anteriormente me escapava a unidade da estrutura do texto, embora me tenha identificado com muitas reflexões, agora pude ter uma visão do conjunto, cuja dispersão é, além de intencional, aparente. As lições e os motivos de reflexão deste livro são (ou deviam ser) inesgotáveis para nós como leitores (comprometidos). Vamos lá continuar?

Manuel Nunes disse...

Bom dia, amigos, obrigado pelos comentários.
Quanto às condições acústicas da sala, talvez tenhamos agora condições para tentar o outro espaço. Veremos com a Biblioteca à medida que se forem levantando as medidas de saúde em vigor.
Entretanto, é hora de se começar a tratar dos livros de 2022. Pensei num trimestre denominado HISTÓRIAS EXEMPLARES em que se incluiria "O Príncipe com Orelhas de Burro", de José Régio (há exemplares disponíveis em todas as bibliotecas) e, talvez, "Bichos", de Miguel Torga. Outro a que se chamaria CENTENÁRIO DE SARAMAGO com "Manual de Pintura e Caligrafia" e "Autobiografia", de José Luís Peixoto. Depois dirão o que pensam.

Maria Amélia disse...

Por coincidência, para as histórias exemplares surgiu uma proposta do agrado de alguns, talvez inspirada pela última sessão, com os contos exemplares da Sophia (com a ideia de que podia ser o último do ano de 2022). Outra, que me anda "encalhada" é Contos Impopulares da Agustina. Claro que se podem escolher só alguns contos. Já quanto ao Régio, se lêssemos também o Histórias de Mulheres, conforme sugerido, talvez se dispensasse o Príncipe... O Manual... e a Autobiografia parecem adequados à finalidade em causa. No entanto, há mais umas ideias a borbulhar... que se podem depois partilhar, se for o caso.

Manuel Nunes disse...

Respondo à Amélia.
"O Príncipe com Orelhas de Burro" é um livro muito interessante que se encaixa perfeitamente no tema Histórias Exemplares. Assim como "Bichos" que poucos terão lido. Ou estarei enganado?
"Histórias de Mulheres" é mais conhecido, sobretudo por dois contos: Davam Grandes Passeios aos Domingos e O Vestido Cor de Fogo. Vai fazer parte -por sugestão a que sou alheio- das leituras de 2022 do Clube de Leitura do Museu Ferreira de Castro, e eu gostaria de não repetir na Comunidade livros a ler ou recentemente lidos noutras comunidades.
Quanto a Agustina, por mim tudo bem. E Sophia, idem.
E não sei se será altura de lançar um desafio aos nossos leitores: um livro de poesia: Sophia, Ruy Belo ou outro...