“…Brilha o céu, tarda a
noite, o tempo é lerdo, a vida baça, o
gesto flácido. Debaixo de sombras irisadas, leio e releio os meus livros,
passeio, rememoro, devaneio, pasmo, bocejo, dormito, deixo-me envelhecer. Não consigo comprazer-me desta
mediocridade dourada, pese o convite e o consolo do poeta que a acolheu. Também
a mim, como ao Orador, amarga o ócio, quando o negócio foi proibido. Os dias
arrastam-se, Marco Aurélio viveu, Cómodo impera, passei o que passei, peno
longe, como ser feliz? Mara, mais além, borda, sentada numa cadeira alta de
vime, junto aos degraus da porta. Há́ pouco, ralhava com as escravas. Agora
ri-se com as escravas. Em breve ralhará com as escravas. Do local em que me
encontro não consigo ouvi-la, mas quase adivinho as razões dos risos e dos
ralhos. É-me agradável saber que Mara está perto, e reconhecer-lhe tão bem,
desde há́ tantos anos, os trejeitos e os modos. Momentos atrás, sem nenhuma
razão especial, veio até junto de mim, com o seu animal de regaço que é agora
um gato cinzento, depois de, em hora nefasta, ter perdido a rola, muito alva,
que lhe vinha comer à mão…”
In “Um Deus Passeando pela
Brisa da Tarde” de Mário de Carvalho
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