Em 2008, num dia de Agosto em que tinha razões para andar aborrecido, coloquei esta prosa azeda num blogue de estimação. Ao ver hoje a lição do Professor Samuel Titan (Universidade de São Paulo) lembrei-me de a repescar.
A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( VI )
Encontramos em Madame Bovary um episódio impressionante, de uma obscenidade excessiva, que atira o adultério de Emma e a perfídia dos seus amantes para o plano singelo das coisas comuns. Trata-se da operação ao pé boto do infeliz Hippolyte, um “acto médico” de Charles Bovary que acarretou ao paciente a consequência natural de uma gangrena: a amputação da perna.
Dificilmente se encontrará em outro romance, como neste de Gustave Flaubert, um libelo tão impiedoso contra os charlatães da medicina.
Dir-se-á que se estava no século XIX, tempo de ideais e filosofias mas de limitado progresso das ciências médicas. É verdade. De resto, não faltam casos de convicções pseudocientíficas na ficção literária de Oitocentos. Veja-se, por exemplo, O Primo Basílio e a morte de Luísa, a “febre cerebral” de que foi acometida, sendo-lhe rapada toda a cabeça para mais eficaz resultado das compressas húmidas com que pretendiam debelar-lhe o mal. Veja-se o uso indiscriminado das flebotomias, a crença nos resultados dos sinapismos e das ventosas, as garrafas de medicamentos preparadas por génios de botica do tipo Eusébio Macário.
A negligência médica de Charles Bovary foi instigada pela inanidade científica do farmacêutico Homais. Ainda hoje os grandes erros médicos resultam, na maioria dos casos, de uma conjugação de equívocos entre a medicina e a farmacêutica – uma indústria poderosa que delapida milhões em estratégias de marketing perante a postura reverencial de investigadores e instituições universitárias. O corrupio de delegados de propaganda médica à porta dos consultórios e os congressos organizados em hotéis de luxo configuram uma medicina submetida à lógica do lucro, onde conta mais o dinheiro que a felicidade das pessoas. E não devia ser assim.
9 comentários:
Infelizmente, ainda continua a ter validade. Como diz o Professor Titânico, Charles e medíocre em tudo. Pobre Madame Bovary, a morrer frustada de tudo...
Vamos com calma: o nosso Charles, pelo que me foi dado observar até onde pude chegar, é apenas oficial de saúde, não um médico graduado. Eventualmente terá excedido as suas competências ao efectuar uma cirurgia do calibre descrito, o que, efectivamente, não abona a seu favor, agravando, pelo contrário o juízo que se possa fazer. No entanto, na minha opinião, as complexas redes de interesses ligadas à saúde, na origem de situações pessoais igualmente dramáticas, põem a um canto as descritas na literatura, paradigmáticas de um passado pre-científico e que o meu amigo muito bem evoca no seu escrito.
Sim, Madame, o homem não tinha o grau de doutor, mas exercia medicina legalmente, tanto que até foi substituir um velho médico lá em Tostes. No colégio para onde o pai o mandou estudou anatomia, fisiologia, psicologia, etc., matérias essenciais para exercer a arte. Era um "officier de santé" diplomado. - É o que mais temos por aí, oficiais diplomados que nos tratam da saúde!
Registei e apreciei a leitura atenta que está a fazer. Outra coisa não seria de esperar.
Oh le pauvre Charles, il faut avoir de la pitié avec lui …. quand même …
Folgo em ver que este blog continua muito bem frequentado.
Não me posso alongar no comentário, uma vez que ainda mal travei conhecimento com o atrapalhado Charles. Avancemos pois, na leitura!
PS: Há enlatados que duram para a vida...
A menina desculpe (não a conheço, mas parece-me mais naïf que a sua colega de blog...): qual é o enlatado que não tem prazo de validade?
A menina Heloïse B (chiquérrimo!)não me interprete mal!
Eu não disse que não têm prazo de validade, mas sim que têm o prazo de uma vida inteira ....
Há enlatados que duram, duram ....
ôlhem, madames e mademoiselles, e se lessem o livrinho completo, o analisassem e debatessem, não seria mais interessante?
Ora aí está o silêncio da leitura...sabiam que a leitura silenciosa entrou nos hábitos ocidentais (sim, porque este é o nosso legado)depois da invenção do códice? Isso, o antepassado do nosso amigo Livro: quer dizer, em vez daquela trabalheira de enrola-desenrola (que nem devia dar uma grande vontade de ler, ou escrever, e isto para não falar das tabuinhas enceradas...), tínhamos enfim umas folhas (papiro ou pergaminho), dobradas a meio e cozidas umas às outras pela dobra...eram cadernos! Nos últimos dias tenho ouvido múltiplas queixas contra a letrinha formiguinha das edições de bolso da nossa fabulosa M. B. Ora imaginem a nossa comunidade no século IV, por exemplo, e não havia de ser aqui; já constariam por cá os nossos antepassados, mas, a não ser que pertencessem a algum grupo social privilegiado, nem sonhavam que o Livro era possível! (E já agora nós: sonhamos com quê, para além de um possível Fahrenheit 451? Que livro vivo serias tu?)
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