Com o sentido de dinamizar o blog, criámos em tempos a série "Palavras para que vos quero" com o objectivo de publicar pequenos textos dos membros da nossa Comunidade. Durante algum tempo foram sendo publicados alguns com esta etiqueta, mas depois a ideia foi caindo aos poucos. Assim lembrei-me de lançar o desafio: vamos ressuscitar o tema? Os nossos leitores que tenham textos que gostassem de ver por aqui, podem enviar para mim que eu publico.
Edvard Munch - Tavern in St. Cloud, 1890
O
despertar
Acordou
lentamente com a cabeça a querer explodir. Demorou a perceber onde estava.
Tentou abrir os olhos e o sol que entrava pela janela atingiu-o violentamente
como se de um raio se tratasse. A rigidez por baixo do seu corpo fê-lo perceber
que não estava na cama. Dolorosamente abriu os olhos e viu que estava no chão
da sala, com uma das pernas apoiada no sofá. Apesar do silêncio em casa ser
absoluto, sentiu que devia ser tarde pelos barulhos exteriores. Ouvia-se o
piano da vizinha do lado e gritos de crianças a brincar no jardim da frente.
Levantou-se cambaleando ainda com os efeitos do álcool a fazer-se sentir. Ao
passar na entrada viu que a cozinha estava vazia e dirigiu-se para os quartos,
percebendo rapidamente que estava sozinho. Quando espreitou o quarto do filho
pareceu-lhe que alguma coisa estava errada, tendo a confirmação quando entrou
no seu quarto. Alguns dos objectos tinham desaparecido de cima da cómoda, as
portas do roupeiro estavam abertas e faltavam roupas. As roupas da sua mulher.
Sentiu o estômago a contrair-se. Correu de novo para o quarto do filho, agora
totalmente desperto. A maior parte dos brinquedos tinham desaparecido, os
armários praticamente vazios, tudo com o aspecto de ter sido esvaziado à
pressa. Correu à casa de banho e também ali faltavam escovas, boiões e outros
objectos pessoais. No escritório, a secretária da sua mulher parecia ter sido
varrida pelo vento, faltava o portátil e havia papeis, lápis e clips
espalhados, como se ela tivesse feito uma recolha rápida das coisas mais
básicas, numa imensa pressa de partir. Sentiu um vómito súbito e fez um esforço
para o controlar. Voltou à sala e só então percebeu a desordem na mesma. Duas
cadeiras estavam caídas, havia revistas pelo chão e a jarra com flores
habitualmente em cima da mesa grande tinha caído com a água a manchar a
superfície. Fez um esforço para se lembrar do que tinha acontecido na véspera,
mas o cérebro ainda estava cheio de nuvens pesadas. Foi à cozinha e o caos era
total, havia louça partida, bancos caídos, comida espalhada pelo chão e ….
sangue, manchas de sangue na porta do frigorífico. Sentiu-se gelar. Cambaleou e
teve que se apoiar no balcão para não cair. A imagem da mulher a ser
violentamente atirada contra o frigorífico fez-se nítida na sua mente. Lembrou-se
do grito e do seu olhar de infinita surpresa antes de cair desamparada no chão.
Recordou-se de a ter pontapeado numa fúria incontrolável e quando ela ficou
quieta e enrolada sobre si mesma dirigiu-se à sala e simplesmente apagou. E
agora estava sozinho. O que tantas vezes lhe passara pela cabeça acontecera. O
álcool tinha-o levado longe demais e fizera-o perder o controlo. Olhou para
cima do frigorífico e viu a fotografia do filho, a rir numa gargalhada feliz, de olhos grandes e expressivos. Agarrou a moldura, apertando-a contra o peito
e desmoronou, caindo por terra. As lágrimas brotaram num soluço incontrolável,
percebendo que tinha perdido o que de melhor a vida lhe dera. A raiva contra si
próprio inundou-o fazendo-o bater a cabeça repetidas vezes no chão. Ao mesmo
tempo começou a sentir uma nova força a crescer dentro de si. Ia lutar contra o
maldito vício, ia recuperar a sua família e o seu trabalho. Poderia levar
meses, anos, mas iria conseguir. E começou lentamente a levantar-se ...
Custódia (Abril
2009)
5 comentários:
Mon Dieu, que despertar! Uma boa lição... E venham de lá esses textos.
Bia diz...
Muito bom Custódia. Bom também seria que todos os "despertares" fossem redentores como este.
Ideia muito interessante, Custódia. Fui espreitar os textos anteriores. Bom recomeço: da crise vem a renovação...
Quem tem textos, toca a publicar...eu cá só escrevo sobre os autores e afins :)
Boa, Custódia. Fica-se um bocado triste, por causa um certo realismo latente, mas aqui estão as almas redentoras, a ver o lado positivo das coisas...e concordo com a Paula: venham mais textos.
Vim para conhecer e gostei! Vou seguir para não perder de vista :)
Beijo.
Nita
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