A abrir:
“Nasci nesta casa e criei-me nela. Nunca saí. Ao entardecer encosto o
corpo contra o cristal das janelas e contemplo o céu. Gosto de ver as labaredas
altas, as nuvens a galope, e sobre elas os anjos, legiões deles, sacudindo as
fagulhas dos cabelos, agitando as largas asas em chamas. É um espectáculo
sempre idêntico. Todas as tardes, porém, venho até aqui e divirto-me e comovo-me como se o visse pela primeira
vez. A semana passada Félix Ventura chegou mais cedo e surpreendeu-me a rir
enquanto lá fora, no azul revolto, uma nuvem enorme corria em círculos, como um
cão, tentando apagar o fogo que lhe abrasava a cauda.
– Ai, não posso crer! Tu ris?!
Irritou-me o assombro da criatura. Senti medo mas não movi um músculo.
O albino tirou os óculos escuros, guardou-os no bolso interior do casaco,
despiu o casaco, lentamente, melancolicamente, e pendurou-o com cuidado nas
costas de uma cadeira. Escolheu um disco de vinil e colocou-o no prato do velho gira-discos.
“Acalanto para um Rio”, de Dora, a Cigarra, cantora brasileira que, suponho,
conheceu alguma notoriedade nos anos setenta. Suponho isto a julgar pela capa
do disco. É o desenho de uma mulher em biquíni, negra, bonita, com umas largas
asas de borboleta presas às costas. “Dora, a Cigarra – Acalanto para um Rio – O Grande Sucesso do
Momento”. A voz dela arde no ar. Nas últimas semanas tem sido esta a banda
sonora do crepúsculo…”
“O Vendedor de Passados”
de José Eduardo Agualusa
2 comentários:
Obrigado. Haja alguém que faça alguma coisa por este blogue.
Há sempre um mínimo para manter a porta aberta :)
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