23 junho 2017

SOBRE O "ELOGIO DA MADRASTA"


Impressões de uma amiga, não frequentadora da nossa Comunidade, que leu o livro há alguns anos:

Llosa, no Elogio da Madrasta, certamente uma consistente composição narrativa, de trechos interpolados e magníficas descrições de pinturas famosas, eróticas, todavia de anteriores épocas, enquadradas em rica e poética intertextualidade, foi obra lida há tempos. Tesouro de construção literária, deixou-me azedume face ao enteado, adolescente em afirmação de poder contra e sobre o feminino, a madrasta, mulheraça de contornos idênticos ao do seu marido, superior na hierarquia do jovem,  não a empregada doméstica, sua subordinada, a que depois se lança - as mulheres da casa, a mulher instanciada nas mais próximas, sei lá… Se as primeiras emoções sexuais assim se esboçam... patriarca no poleiro, a decidir e o adolescente já a querer substituí-lo, desprezando e servindo-se do outro (como a madrasta dele, claro) , está-se face a perversão das relações desejáveis em comunidade - não no mero sentido sexual. Espelho de certo meio social, infecção de duas gerações? Sátira? (…) E um rasto de certo humor discreto. Contudo a beleza da escrita não me empolga, excessivo para a temática: seres submetidos a impulsos por si mesmos, sensualidade pela sensualidade que nisso se esgota, ternura zero, encerrados seus autores num casulo, não há outros nem cosmos, mais nada. Estranho. Jogos num campo único, sem mais sopro vital. Lembro os rituais corporais, os banhos, e isso é interessante, iniciáticos, mais velhos a passar testemunho ao adolescente, certo plano mítico. Muitas vidas comunitárias ( penso em certo monaquismo, como em Quram, que visitei) dispunham de inúmeros reservatórios de águas destinadas a sucessivos banhos. Atenção a uma corporalidade neste caso banida, expandida em Llosa. Curiosa ritualização, evoca-me a sacralidade inicial, SACER no indoeuropeu, que era a fecundidade, tudo o que faz crescer, e inchar, GONFLER. Acento na fisicalidade, sem contornos além do encontro de corpos. Todavia, do que retive na memória, é uma duplicidade, inocência-perversão o foco da obra: a relação madrasta-enteado e o desejo mútuo, mas já acima apontei como senti tal acordar para a sexualidade. Vejo-o negativo, não penso que deva seguir o desejo por vias de vontade de domínio, de manipulação, de denúncia - a redacção e sua leitura não são inocentes; como nem a frase final,  tipo, «mas ela não é minha mãe», incesto arredado; ou o desvio de «amar a mãe», «usar a madrasta», de cabeça um tanto oca. Creio ser mais o determinar-se a usurpar o poder familiar do pai.
 

4 comentários:

Bia disse...


Reproduzo uma parte do texto com que concordo, foi também esta, uma das conclusões que retirei.
"... seres submetidos a impulsos por si mesmos, sensualidade pela sensualidade que nisso se esgota, ternura zero, encerrados seus autores num casulo, não há outros nem cosmos, mais nada."

Manuel Nunes disse...

A par da relação erótica, julgo que havia ternura entre o casal. Ela não aparece muito, é certo, porque o foco narrativo, por opção do autor, não aponta para aí. Mas veja-se o telefonema de Trujillo, quando Rigoberto se encontrava ausente em viagem de negócios (cap. 4): «Tem muito cuidado contigo, meu amor». Se isto não é uma manifestação de ternura, o que é?

Bia disse...

Parece-me que nessa altura, já Lucrécia não resistia à tentação, portanto, talvez o dissesse com sentimento de culpa. Há mulheres que, não mentindo, também não dizem a verdade.

Ludovina disse...


No final do capítulo 8, "Rigoberto murmurou mais uma vez que a amava e, cobrindo-a de beijos, agradeceu os seus dias e as suas noites a imensa felicidade que graças a ela o culminava".

Final do capítulo 6 "Quando se meteu na cama ainda tremia. Esteve muito tempo sem dormir, sentindo falta de Rigoberto" No contexto deste passo, penso que, para Lucrécia, a falta do marido não advém de clamores físicos, mas antes de uma necessidade de amparo.

Também não sei se a questão do amor entre os elementos deste casal é importante na obra. Não estaremos a impor ao texto uma matriz moral, advinda da nossa cultura judaico-cristã, que lhe não convém?

A fruição dos sentidos não pode ser um objetivo em si? "Desde que casámos estou a aprender a viver, Lucrécia ... Se não fosse por ti, teria morrido ignorante de tanta sabedoria, e sem suspeitar o que era, de verdade, gozar".

Há em toda a obra uma atenção ao corpo e aos sentidos que é criticável à luz da nossa cultura, que privilegia o espírito. Corpo e espírito; mal e bem.

...no entanto, é da purificação do corpo que se trata, quando nos apresentamos nos espaços sagrados e estes inspiram sempre sentimentos e fazem aspirar ao além.


Só para terminar, gostaria de voltar ao menino Fonchito, que embora seja descrito como um anjo, me lembra mais Cupido, na sua dupla representação de criança e de efebo, apaixonado por Psyché, a quem prodigalizava visitas noturnas.

Muitas histórias encerram esta história!