«Tal faz com que, na Psicologia da
Viagem, tenha surgido ultimamente a ideia da sua supremacia sobre os outros
ramos, chegando-se ao ponto de se defender que não pode haver outra Psicologia
a não ser a Psicologia da Viagem.»
-- OLGA TOKARCZUK, Viagens
Tocado pela escrita da
nossa autora deste mês, venho falar de aeroportos.
Duas experiências apenas,
pontuais e insignificantes. Quantas de bem mais robusto interesse não terão
para contar as nossas leitoras? Ah, a Psicologia da Viagem! Que falem agora, ou
então calem-se para sempre.
1ª experiência:
Barcelona, aeroporto
d´El Prat de Llobregat, há uma carrada de anos.
Saí pelas 9 horas da
manhã de um hotel na Diagonal à boleia de pessoa amiga que ia trabalhar para o
seu escritório na zona do aeroporto. Meia hora depois ali estava, só que o meu
voo para Lisboa era ao fim da tarde. Porque não fiquei a passear pelas Ramblas
ou pelo Paseo Marítimo e me fui meter, com antecedência de oito ou nove horas,
naquele antro de partidas e chegadas, de escadas rolantes e vozes multilingues
disparadas como balas dos canos estriados dos altifalantes? Quis
aproveitar a boleia, foi isso, conversar mais uns minutos com quem me
levava, e ali permaneci todo o dia claro com a pequena mala que tinha por
bagagem, observando, lendo e rabiscando umas notas sem préstimo. Almocei uma sandes
de boa catadura e gosto indiferenciado que me custou um ror de pesetas, saudosa
divisa, as moedas mostrando a cara daquele rei que veio a especializar-se em
caçadas de elefantes e negócios comissionados. Acho que a certa altura me
fartei. Então errei pela vastidão dos espaços, entrei nas casas-de-banho só para
me ver aos espelhos, fiz perguntas impertinentes aos balcões das companhias
aéreas, tais como qual é o preço de uma viagem para Miami ou com que frequência
há saídas para o Rio de Janeiro. Ah, lembro-me bem, vi mulheres belíssimas de
todas as cores e feitios. Foi bom, mas para um dia inteiro é cansativo. Fui o
primeiro a fazer o check-in, eram 5 horas da tarde.
2ª experiência:
É como que simétrica
da anterior. Voo de Lisboa para Veneza, há cerca de um ano.
O avião levantava
antes das 7 da manhã, tinha de estar no aeroporto pelo menos uma hora antes.
Achei pouco seguro sair de casa (arredores de Lisboa) de madrugada. Pensava que
poderia não encontrar táxi ou que, se ajustasse previamente o serviço, o taxista
poderia falhar por qualquer razão imprevista. Nunca tinha saído num voo tão
madrugador e não queria arriscar-me a ficar em terra: um caso certamente merecedor de análise no âmbito da Psicologia da Viagem. Cheguei ao aeroporto à 1 da manhã,
quando cessam os voos de partida e chegada. Depois desta hora tudo se
transforma: há carros de aspiração e limpeza em circulação; operários
trabalhando com o ruído dos seus berbequins a retirar e a colocar painéis publicitários;
há luzes que se apagam ou diminuem de intensidade. Há quem durma nos esconsos
do amplo espaço sobre cartões e mantas: passageiros a aguardar viagem ou
sem-abrigo em lugar protegido e climatizado? Não cheguei a apurar. Dormir nos bancos
é propósito ínvio, tanto pela configuração e incomodidade dos assentos como pelo barulho dos
trabalhadores em acção. Desisti de dormir, fiquei a ver o circo. Pelas 3
horas da manhã, uma miúda de vinte e poucos anos veio ter comigo.
Estava ali por razões mais ou menos idênticas às minhas: eu aguardava a partida,
ela esperava a chegada de um amigo num voo de Cabo Verde, lá para as 5 e tal da
manhã. Por essa hora não tinha transporte, então veio para o aeroporto à
meia-noite.
“Está à espera de que
voo?”
“Estou à espera de
partir, vou para Veneza.”
“Ah, Veneza, a minha
avó esteve lá no ano passado, não gostou.”
Imaginei a pobre
senhora na Praça de São Marcos, cercada de hordas de chins e outros povos
estranhos, a circularem aos magotes pelas bordas dos canais e ela em grande
perigo de cair à água, desejosa de se ver ao sol de Lisboa e em terra firme do
seu bairro.
“O patrão do meu amigo
deu-lhe uma semana de férias por ter feito um bom trabalho. Pagou-lhe a viagem.
Por outro não estava aqui, mas este amigo merece.”
Não aprofundei, mas cá
para mim era amigo colorido. Apreciei
a forma como a ele se referia e lembrei-me do nosso rei trovador.
Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo?
Ai Deus, e u é?
Acho que lhe perguntei
o nome, gosto de saber o nome dos meus interlocutores, mas se mo disse já o esqueci. A amor é bonito. Uma noite passada no
aeroporto também.