Na sessão da passada sexta-feira, fomos brindados com um excelente ensaio do nosso Coordenador Manuel Nunes, sobre o conto "A Festa de Babette". Aqui fica para quem não pôde estar presente e também para uma releitura mais atenta dos que por lá estiveram...
"De acordo com um preceito que remonta a Horácio, poeta latino do século I a.C., o texto literário deve servir para instruir e deleitar. Ou seja, deve ser uma fonte de prazer para o leitor e cumprir, ao mesmo tempo, propósitos de natureza ético-pedagógica. Isto parece tão óbvio que quase escusava de ser dito a quem lê e partilha leituras numa comunidade de leitores. Temos então, repita-se, “instruir e deleitar”.
Gonçalo Fernandes Trancoso, autor português do século XVI, publicou em vida a sua obra Contos e Histórias de Proveito e Exemplo cujo título, como é evidente, remete para essa função eminentemente ética e pedagógica da escrita literária em geral e do género conto em particular.
O
conto A Festa de Babette, de Karen
Blixen, é isso mesmo, um conto de proveito e exemplo. Proveito por nos instruir
sobre tantas coisas da vida, exemplo por nos indicar caminhos a seguir,
e
isto sem deixar de nos deleitar pelos lances curiosos e engraçados com que nos
deparamos ao longo do texto.
Em A Festa de Babette temos uma história cujas principais personagens se dispõem como que em pentagrama: duas mulheres, dois homens e uma terceira mulher que é o eixo do enredo. Tanto as duas mulheres (as irmãs Martine e Philipa, filhas de um deão e profeta luterano da Noruega profunda) como os dois homens (o oficial hussardo Lorens Loeuwenhielm e o cantor Achille Papin da Ópera de Paris, apaixonados por cada uma das irmãs) se cruzam e entrelaçam com Babette Hersant, chefe de cozinha do Café Anglais de Paris e communarde activa nas barricadas de 1871, forçada depois ao exílio pelo fracasso da acção revolucionária.
Lembremos os dois apaixonados das irmãs. O primeiro não foi capaz de revelar o seu amor, seguindo como compensação uma ambiciosa e fulgurante carreira das armas; o segundo amou e revelou o seu amor mas, castigado pela rejeição, não logrou avançar na carreira artística: faltava-lhe a outra face de si, aquela que pelos dotes de cantora lírica completaria e daria sentido à sua arte.
Tomemos
as palavras do Salmo 85, citadas pelo deão e inscritas em várias passagens do
texto:
«A Misericórdia e a Verdade se reuniram; a Virtude e a Ventura trocaram um beijo».
Ultrapassando o sentido bíblico e cristão desta passagem do salmo, a Misericórdia deve ser entendida como o amor e a Verdade como a sua revelação. É desta forma que a Virtude e a Ventura se prestam a trocar um beijo.
Com estas palavras do salmo se abre o discurso do General Loewenhielm na festa de Babette, sabendo-se que esse discurso é o resgate do seu passado rumo a um futuro marcado pelos valores espirituais. Diz-se no conto que no fim da sua carreira, com o peito repleto de medalhas, o general se preocupava com a alma. Mas não lhe chamemos alma, demos-lhe outros nomes: verdade, equilíbrio, paz, solidariedade, amor – estes os rostos múltiplos da alma, os seus mais belos rostos.
E a graça, também referida pelo general como divina, o que é a graça? Alijada toda a carga religiosa e sobrenatural, a graça é aquilo que nos é revelado pela razão e pela inteligência emocional: a vontade de sermos justos, de não ofender ou maltratar os outros, de sermos humanos procurando os melhores caminhos para a felicidade. Era esta graça que o general quereria albergar em si. Por isso o seu discurso foi a melhor iguaria da festa de Babette, melhor que o amontillado, os blinis Demidoff, as cailles en sarcophage ou as uvas só comparáveis em excelência àquelas que os filhos de Israel encontraram no vale do Escol.
O melhor da festa foi também o desapego material de Babette, gastando os seus dez mil francos num jantar que foi um hino à vida e ao valor da amizade e da memória. Um jantar que reconciliou todos com todos e cada um consigo mesmo, ainda que no final não se lembrassem os membros da congregação dos pratos que haviam desfilado pela mesa. É o sensível dos sabores a ser ultrapassado pelos sentimentos do amor e da reconciliação.
Sim,
porque é de reconciliação que se trata. Reconciliação de Babette com a sua arte,
pois o título da última parte do conto é justamente “A grande artista”.
Reconciliação com os nomes grados de nobres e burgueses que apreciaram a sua
cozinha nos jantares do Café Anglais, esses inimigos de classe que combateu até
ser derrotada nas barricadas de Paris. De acordo com o testemunho do General
Loewenhielm, o Coronel Gallifer, frequentador habitual do Café Anglais, exaltava
o génio culinário da chefe de cozinha, o romance de amor que escrevia em cada
jantar em que punha a mão.
Há um sentido alegórico em tudo isto: a arte é vida e pode a vida passar pelos transes mais difíceis sem que esmoreça o seu valor. A arte de Babette valia mais que os dez mil francos e ela provou-o. Porque a arte só é dinheiro para os artistas fingidos e enganadores, os que vendem e se vendem (as duas acções em simultâneo) sem atenderem ao espírito da criação do belo.
O hino dos irmãos da congregação continha dois versos nos quais se ouvem as palavras do Evangelho de Mateus, capítulo 7, versículos 9 e 10: «Irás dar uma pedra ou um réptil / ao teu filho que implora o alimento?»
Assim como diz o evangelista, também o artista deve dar o pão em vez da pedra, e o peixe em vez da cobra aos que buscam como alimento a sua arte.
Por tudo isto, A Festa de Babette lê-se com a enorme alegria de quem está na presença de um texto singularmente belo.
E para finalizar, uma pequena nota exclamativa: como este conto de apenas quatro dezenas de páginas é capaz de nos interpelar como não nos interpelam alguns grossos volumes de centenas!"
MJMN, São Domingos de Rana, 25-10-2024
Sem comentários:
Enviar um comentário