06 fevereiro 2013

UMA HISTÓRIA A DOIS TECLADOS (II)

JOÃO ALBERGARIA (texto 3)

 
3
 
O poeta falhado expendeu, entretanto, algumas considerações sobre mulheres que conhecera e amara: a morgadinha dos canaviais, Emma Bovary, a Barbara de Jacques Prévert.
Regurgitava de gente a Cervejaria Virginal, Vaginal se chamaria se o produtor, atento ao assunto, não tivesse intervindo no script para corrigir a enormidade.
– Depois deste filme, que me parece poder descambar em algumas ousadias torpes, só investirei em histórias com meninas do tipo Jenny ou Joaninha dos Olhos Verdes – terá dito.
A anotadora, uma rapariga de cachecol ondulante e saia cor de tijolo da Mango, trocou um olhar de entendimento com o realizador, enquanto a barra zebrada da claquete era movimentada por um assistente, produzindo aquele ruído seco parecido com uma palmadinha no pescoço ou um falso beijo repenicado. Iniciado o take, disse o ajudante de despachante para o poeta falhado:
“Percebes bem pouco de mulheres, meu caro amigo. Fica a saber que as piores gajas são as da alta. Se te decidires a começar com alguma, escolhe uma costureirinha, uma rapariguinha do shopping, uma funcionária municipal com vencimento não superior a 550 euros. O meu patrão é casado com uma tipa cheia de massa, e ainda por cima quinze anos mais nova do que ele, sei bem o que se passa na vida daquele casal, nem me atrevo a falar.  Razão tinha o nosso D. Francisco Manuel de Melo na sua carta de guia de casados!”
O poeta falhado contrapunha:
“Mas o amor, meu amigo, e deixamos de acreditar no amor?”
O ajudante de despachante mandou vir mais uma imperial; abriu a pasta de couro para se se certificar de que não havia perdido o processo de despacho aduaneiro respeitante às peças para submarinos do Ministério da Defesa; tirou de um dente lascado, com a unha do dedo mínimo, um pedaço de tremoço que o afligia; deu liberdade, em discreto flato, a um congestionante gás estomacal.
Ia finalmente falar, mas foi interrompido pela realização. À porta da cervejaria, em grande algazarra de concertinas, violas, cavaquinhos e passinhos, passava o rancho folclórico de Aranda dos Montes, concelho de Alguidares da Beira, que tinha ido a S. Bento cantar as janeiras ao senhor primeiro-ministro. Era nos dias a seguir aos Reis, devem estar recordados.

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