JOÃO ALBERGARIA (texto 1)
1
“Pois
meu amigo, nas relações amorosas há dois géneros de mulheres: as que não
iniciam uma nova relação sem acabarem com a anterior, e as que precisam de
começar com outra para porem fim àquela que têm. As primeiras são mulheres
basicamente honestas, admiro-as de verdade, as segundas não têm carácter, são
criaturinhas ínfimas e desprezíveis.”
Quem
falava assim era um ajudante de despachante que costumava sentar-se na
cervejaria, nas tardes lentas de Verão, à hora em que o pessoal começava a sair
dos escritórios e a sede acumulada do dia tomava proporções titânicas. Era um
tipo magro, de testa alta e nariz adunco, fazendo lembrar uma ave rapace.
Trazia sempre consigo uma grossa pasta de couro, refúgio seguro dos processos
que, a mando do seu patrão, diariamente levava à alfândega. Sentia-se ali um
caso de amor mal resolvido, um desgosto, talvez uma traição, mas quem somos nós
para avaliar essas situações que ensombram as almas dos infortunados
amantes?
Trincava
um tremoço e continuava:
“A
mentira mais insidiosa é a que opera por omissão: essa é a grande arte da
mentira feminina. Digo-te, meu amigo, raras são as mulheres que simulam
orgasmos ou se queixam de enxaquecas quando vão para a cama. Expediente mais
comum é deixarem-se ficar a ver televisão até às duas da manhã e só recolherem
ao leito conjugal quando estão certas de que o marido dorme o sono dos justos.
Enganadoras filhas de Eva!”
O
homem que o escutava, um poeta falhado, obtemperava de olhos piscos entre duas
dentadas num rissol de camarão:
“A
poesia, meu caro, é preciso ver isso à luz da poesia.”
2
“O amor goza de prazo de validade, não se
pode congelá-lo por tempo indeterminado. Há quem admire a relação amorosa como
um monumento imponente, quando não passa de construção frágil, uma capelinha
vacilante.”
“Achas? Em tempos tive uma paixão de caixão ao
chão e…”
- Cortaaa! “Uma paixão de caixão ao chão”??
Onde é que isso está no script? Isto
é alguma novela assente no improviso?
- O texto é monótono…
- Pá. És o argumentista? Não és o
argumentista. Ontem também meteste a colher no texto e essa atitude já me
começa a trabalhar no estômago. Cinge-te ao guião. Fazes favor.
Iam no décimo primeiro take. A cena, que à partida se oferecia simples, expunha-se a
contingências variadas. Primeiro um adereço do cenário, o autocolante a imitar
azulejo português sinalizando a “Cervejaria Virginal”, começara a descolar-se,
lentamente, por trás da cabeça do ator que fazia de empregado, tirando
protagonismo ao seu estudado gesto de poisar o pratinho de tremoços sem ressoar
no vidro da mesa - Corta!
Cortaram depois ao ver-se a silhueta de um
figurante entrar inadvertidamente no frame,
ofendendo, segundo justificação do realizador, o delicado equilíbrio luz -
sombra. Cortou-se quando o ator da pasta de couro se atrapalhou em pleno
diálogo, falando de “ormas… osmargu… ormasgos… Eh pá desculpem, enrolou-se-me a
língua”, corando como uma cereja do Fundão por entre a risota geral. Corta!
também quando o ruído de uma avioneta abafou a fala grave do narrador e
encrespou os nervos da equipa de filmagens, a quem haviam garantido total
ausência de sobrevoos ao local entre as sete e trinta e as dezanove horas desse
dia. De contratempo em contratempo, a picuinhice do realizador ainda gritou
Corta! no instante em que um close-up
revelou os pelos eriçados do braço esquerdo do outro ator, pois a cena, embora
invocasse um típico dia de Verão, era gravada logo a seguir aos Reis.
Enfim passava das duas e trinta quando o
realizador sentenciou:
- Há mais cenas para filmar, vamos lá. Última
tentativa: As Horas sem Maria - Take 12
– Ação!
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