Poucas ideias devem ter sido tão discutidas na teoria literária moderna como
a de cânone. Posto em questão devido a ressentimentos de vária ordem, como
sustenta Harold Bloom, ou por razões teóricas mais ou menos ligadas à
Linguística ou às ideologias, o cânone aspira a englobar uma lista de autores e
de obras consideradas modelos de perfeição, seja à escala nacional, seja à
escala ocidental, seja à escala universal. A sua estabilização, sempre a
entender em termos flexíveis e abertos a sucessivas incorporações, supõe a
passagem do tempo, a filtragem pela consciência colectiva e a inserção em
coordenadas civilizacionais, a existência e funcionamento de critérios de valor
identitários e estéticos, uma tradição analítica de comentários e uma história
cultural, e provavelmente uma tensão dinâmica com sucessivos contra-cânones.
Sem pretender entrar em discussões teóricas e sem negar que haja uma certa
dose de flutuação necessária no próprio estabelecimento do cânone e dos seus
contornos práticos, considerando o caso português (ou, se se preferir, o dos
espaços em que se fala o português) as coisas podem resumidamente ser postas
assim: deveria haver um conjunto de obras literárias escritas na nossa língua
que todos teriam de conhecer.
No plano do ensino, isto parece de uma evidência elementar, mas tem andado
mais ou menos esquecido. Ora, reduzida às suas linhas mais simples, esta é
afinal a questão do cânone literário e da sua relevância para o currículo
escolar, embora esse plano, por definição, acabe por ser transcendido, pois o
cânone não é propriamente uma simples ferramenta para uso do ensino, mas antes
um quadro de referências indispensáveis e um complexo de elementos literários
respeitante ao sistema de valores e aos interesses culturais de uma dada
sociedade: incorpora uma série de modelos cuja evidência paradigmática se
recorta ao longo dos sucessivos tempos históricos e se impõe à mentalidade e à
sensibilidade colectivas.
Na escola, a abordagem do cânone deve ser flexível e variada. Em Portugal,
antigamente, havia para tal efeito excelentes instrumentos que iam dos cadernos
literários da Seara Nova aos textos da editorial Comunicação e vários outros.
Havia também selectas, crestomatias e antologias que apresentavam
criteriosamente passagens mais ou menos extensas de obras que faziam parte do
cânone. E havia, para quem estudava, a obrigação de saber dessas obras e mesmo
de conhecer algumas delas na íntegra.
Dos cancioneiros medievais a Fernão Lopes, de Bernardim e Gil Vicente a Sá de
Miranda e Camões, de Rodrigues Lobo e Francisco Manuel de Melo a Bernardes e
Vieira, de Bocage, Garrett e Herculano a Camilo, Eça, Cesário, Antero e António
Nobre, isto para dar só alguns exemplos flagrantes do século XIII ao século XIX,
os alunos de Português tinham de contactar com toda uma série de autores e isso
só lhes fazia bem. Visitavam lugares escolhidos da grande literatura escrita na
sua língua e, a partir desses paradigmas, tinham de proceder a vários tipos de
análise e de interpretação, enriqueciam o seu conhecimento do léxico e da
gramática, aprendiam figuras de estilo, adquiriam uma certa compreensão histórica
e contextualizada da obra de cada autor, aperfeiçoavam grandemente o
conhecimento do português como língua materna e tornavam-se capazes de
utilizá-lo melhor. (...)
---------- Gil Vicente, Rodrigues Lobo - leituras e representações recentes... Uma Comunidade muito canónica.
1 comentário:
Ou seja, sempre em cima do acontecimento...
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