31 julho 2013

LUDOVINA DA PRAIA DA INGRINA ou O "LAPSUS LINGUAE" DUM FALANTE


Pouco vira de praias para lá de Burgau e da Luz, desconheço mesmo se alguma vez se aventurara do outro lado da costa, pelas rotas escarpadas de Aljezur e Odeceixe.  Fora da Ingrina, tinha como certas, apenas, as idas diárias ao mercado de Sagres ou à lota da Baleeira. E, mesmo assim, falava com alemães e ingleses como se conhecesse o mundo, os olhos cheios de claridade, enquanto virava o peixe no grelhador ou levava para as mesas os jarros luminescentes de sangria coalhados de gomos de laranja e quartos de maçã reineta.
O corpo, como o dorso dum peixe, fizera-se poema de escamas de sal. O rosto era tisnado e ignorante de tudo, mas os seios, nas horas em que descia à praia, conheciam  as ondulações do mar, as carícias do sol,  o vento fininho da tarde carregado de invisíveis grãos de areia que lhe picavam, como agulhas, as rijezas escuras dos mamilos.
Ludovina da praia da Ingrina! Como me fui encontrar com o teu nome?, logo agora que deves estar carregada de anos, prenhe de filhos e netos, aboletada em algum esconso da vida à espera que se esgote o tempo como um voo breve de gaivota.
Até um dia destes, rapariga, se ainda houver dia.

29 julho 2013

Dulcineia, dulcineia

Dulcineia, dulcineia

Poema de José Gomes Ferreira (A Morte de D. Quixote, in Poeta Militante / Viagem do Século Vinte em Mim - 1º volume, 1977)
Música de Manuel Freire

Dulcineia, Dulcineia,
volte ao que era:
uma plebeia
sem primavera

Volte aos redis,
coberta de chagas
- sem espuma em gomis
nem brilho de adagas.

Volte ao que foi,
pois ainda conserva
um cheirinho a boi,
um cheirinho a erva...

Volte a apanhar pinhas
e bosta para os fornos.
E a tanger cabrinhas
com flores nos cornos.

Volte a andar de gatas
como os outros bichos...
E esqueça as serenatas
aos seus caprichos.

Esqueça o castelo
onde os donzéis
se batiam em duelo
à século XVI...

E volte à aldeia
da sua labuta.

Dulcineia, Dulcineia,
deixe de ser Ideia
e torne-se a carne e a alma
da nova luta.

LEITURA INTENSIVA DE "D. QUIXOTE DE LA MANCHA"

"Escupía Sancho a menudo, al parecer, un cierto género de saliva pegajosa y algo seca; lo cual visto y notado por el caritativo bosqueril escudero, dijo:
- Paréceme que de lo que hemos hablado se nos pegan al paladar las lenguas; pero yo traigo un despegador pendiente del arzón de mi caballo, que es tal como bueno.
Y, levantándose, volvió desde allí a un poco con una gran bota de vino y una empanada de media vara; y no es encarecimiento, porque era de un conejo albar, tan grande que Sancho, al tocarla, entendió ser de algún cabrón, no que de cabrito; lo cual visto por Sancho, dijo:
- Y ¿esto trae vuestra merced consigo, señor?
- Pues ¿qué se pensaba? -respondió el otro-. ¿Soy yo por ventura algún escudero de agua y lana? Mejor repuesto traigo yo en las ancas de mi caballo que lleva consigo cuando va de camino un general."
 
(Don Quijote, segunda parte, capítulo XIII)

Também nós não somos leitores de “agua y lana”, e é à mesa com “vino” – despegador de línguas – que vamos empreender a leitura do grande clássico cervantino.

Presenças confirmadas: João Pequenão, José Cañete, Manuel Nunes.
1ª série de sessões:

Dia 1 de Agosto, 18:00, no jardim de S. Pedro de Alcântara, Lisboa;
Dia 3, 15:00, no Parque Urbano da Quinta da Alagoa, Carcavelos;
Dia 5, 18:00, no Parque José Gomes Ferreira, Lisboa
(ver: http://lisboaverde.cm-lisboa.pt/index.php?id=4111);
Dia 7, 18:00, nos jardins da Fundação C. Gulbenkian, Lisboa;
Dia 9, 18:00, em S. Domingos de Rana.
 
Sessões abertas a todos os leitores que queiram e possam participar.  Basta apresentarem-se  com olhos de ler  e, se desejarem, com  uma botelha de vinho ou um pouco de queijo manchego. Quem não é para comer (e beber), também não é para trabalhar!
 

28 julho 2013

FESTIVAL AO LARGO 2013

Barbora Hruskova, bailarina principal.
http://www.cnb.pt/gca/?id=58
Ontem, no Largo do TNSC: O Lago dos Cisnes pela Companhia Nacional de Bailado.

26 julho 2013

Auto- Retrato do escritor enquanto corredor de fundo





«Na profissão de romancista (...) não existe vitória nem derrota. Podemos falar em números de exemplares vendidos e de prémios literários conquistados, da mesma forma que o elogio da crítica pode muito bem funcionar como ponto de referência relativamente ao êxito (...), mas nada disso tem um significado por aí além. Verdadeiramente importante é o facto de, com a sua escrita, o autor atingir a finalidade a que se propôs, o nível que estabeleceu como meta. E olhem que não é fácil justificar o fracasso. Aos olhos dos outros, podemos sempre engendrar uma qualquer explicação razoável, mas, no fundo, o nosso coração não se deixa enganar. Neste sentido, pode dizer-se que escrever romances e  correr a maratona são coisas muito parecidas. Fundamentalmente, um escritor possui uma motivação interior, uma força calma que não precisa de aprovação nem de ser validada através de critérios exteriores.»

Haruki Murakami, Auto-retrato do Escritor..., Alfragide, Casa das Letras, 2009, p.18

スプートニクの恋人 Supūtoniku no koibito III: a rapariga na cabine telefónica




« Sonho. Às vezes penso que é a única coisa que vale a pena. (...) Mas nunca dura muito tempo, a vigília acaba sempre por me trazer de novo à realidade.
Acordo às três da manhã, acendo a luz, sento-me na cama e fico a olhar para o telefone na mesa-de-cabeceira. Imagino Sumire numa cabina, a acender  um cigarro e a marcar o meu número. (...)O telefone parece que vai tocar a todo o momento, mas continua mudo .(...)
Até que finalmente tocou. Ali, à frente dos meus olhos, tocou mesmo. Fazendo tremer e vacilar o ar do mundo real. (...)
-Estou?
- Olá, estou de volta- exclamou Sumire de um modo muito natural, muito real.- Aconteceu-me tudo e mais alguma coisa, mas lá consegui regressar a casa.(...)
-Onde estás?
-Onde estou? Onde achas que podia estar? Na nossa boa e velha cabina telefónica(...).
- Estou cheio de vontade de te ver- disse eu.
- E eu também (...)-repetiu ela.- Dei-me conta quando nunca mais te pus a vista em cima. Para mim foi tão claro como se de repente todos os planetas tivessem ficado alinhados à minha frente. Preciso mesmo de ti. fazes parte de mim e eu faço parte de ti.(...)
De repente, a chamada caiu. (...). Sento-me na cama e fico à espera de que volte a tocar.(...) O telefone não toca. No ar reina um silêncio incondicional,mas eu não tenho pressa. Não há razão para me apressar. Estou preparado. Posso ir seja onde for.
Certo?
Certíssimo!
(...) Corro as velhas cortinas desbotadas e abro a janela(...) Lá está ela, uma meia-lua em tons bolorentos, pendurada no céu. Que bom. Estamos ligados à realidade através do mesmo fio. Só preciso de o ir puxando devagarinho para mim.»

Haruki Murakami, Sputnick, Meu Amor, Alfragide, Bis- Leya, 2012, pp.262 a 264



Sonho ou realidade? Haverá ainda um laivo de esperança nesta trajectória dos satélites em órbita, ou a fantasia ocupa o vazio do real? Estaremos todos encerrados em cabines telefónicas, apartamentos, automóveis, discos rígidos de computadores, teclas de telemóveis ou como a pobre Laica, num satélite, que somos nós mesmos.

« (...) Fechei os olhos e prestei atenção para ver se conseguia ouvir os descendentes do Sputnick que continuavam a dar voltas á Terra, tendo como único elo de ligação ao planeta a gravidade.  Sol´tários pedaços de metal que se encontram de repente nas trevas do espaço, cruzam-se no seu caminho e depois separam-se para sempre. Sem trocarem uma palavra, sem fazerem uma promessa.» (p. 227)

Se calhar o melhor é aproveitarmos os momentos de impacto, quando os satélites saem do seu caminho estelar e caiem com estrépito sobre a terra; ou os reflexos da boa, velha e trocista lua, bolorenta ou brilhante, que se ergue nas nossas noites, por estes dias. E vamos puxando devagarinho fios dispersos... Certo? Talvez sim, talvez não...


スプートニクの恋人 Supūtoniku no koibito II: Vidas normais e vazias




Da solidão das órbitas humanas:
« E assim prosseguimos com as nossas vidas, cada um para o seu lado. Por mais profunda que seja a perda, por mais importante que seja aquilo que a vida nos roubou (...), e ainda que nos tenhamos convertido em pessoas completamente diferentes, conservando apenas a mesma fina camada exterior de pele, apesar de tudo isso continuamos a viver as nossas vidas, assim, no silêncio, estendendo as mãos para chegar ao fio dos dias que nos coube em sorte, para logo o deixarmos irremediavelmente para trás. repetindo, muitas vezes, (...) o trabalho de todos os dias, deixando na nossa esteira um sentimento de um incomensurável vazio.»

Haruki Murakami, Sputnick, Meu Amor, Alfragide, Bis- Leya, 2012, pp.260/261

Será o amor  uma mera quimera: milhares de seres em órbitas sem nexo aparente, que se chocam aqui e ali e depois continuam a sua trajectória louca , desencontrada e solitária.. e alegadamente «normal»?

スプートニクの恋人 Supūtoniku no koibito I: A chama que ilumina a existência e sozinhos na imensidão do universo




A chama da vida:

« Ao perder Sumire, muitas coisas morreram dentro de mim, como acontece quando a maré recua, levando com ela tudo o que estava depositado na areia. Ficara sozinho num mundo deformado, vazio, um mundo frio e tenebroso. (...) Cada um de nós possui qualquer coisa de especial, que se revela numa determinada altura da nossa vida, e só uma vez, como uma pequenina chama. As pessoas precavidas, abençõadas pela fortuna, conservam religiosamente essa chama, fazem-na crescer, usam-na como uma tocha que ilumina as suas vidas. Mas uma vez apagada, ela não voltará nunca mais a acender-se. Eu não me limitara a perder Sumire. Juntamente com ela, perdera também essa chama»

Interrogações: o que somos nós para a imensidão do Cosmos? Provavelmente partículas insignificantes. O drama é a significância que nos auto-atribuímos.

«Porque razão será que estamos condenados a ser assim, tão solitários? Qual a razão de tudo isto? Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros,e, contudo, todos irremediavelmente afastados. Porquê? Continuará a Terra a girar unicamente para alimentar a solidão dos homens?



Haruki Murakami, Sputnick, Meu Amor, Alfragide, Bis-Leya, 2012,pp.225 e 227

23 julho 2013

A GRANDE RODA

"Comigo ali fechada na grande roda, ele fez de mim o que quis, a mim, que estava."
 
MURAKAMI, Haruki - Sputnick, meu amor, 7ª edição, tradução do inglês de Maria João Lourenço, Alfragide, Casa das Letras, 2009, p. 174.

21 julho 2013

14 julho 2013

Candide live on Broadway - part 1/12


NÃO FOI NA BROADWAY, NÃO, FOI NO LARGO DO TNSC. ONTEM, NA MELHOR DAS NOITES, OS AMORES DE CANDIDE E CUNEGONDE NO MELHOR DOS MUNDOS POSSÍVEIS. OBRIGADO AOS AMIGOS QUE LÁ ME LEVARAM.

11 julho 2013

PILAR DEL RÍO - Os livros da sua vida

Fotos: Joca
 
O Ano da Morte de Ricardo Reis, um dos livros ou, melhor dizendo, o livro. Sábado passado na Biblioteca Municipal de S. Domingos de Rana. Nós estávamos lá.


03 julho 2013

"Sputnik meu Amor" de Haruki Murakami - 26 de Julho, 21h00


A abrir:

"Na Primavera dos seus vinte e dois anos, Sumire apaixonou-se pela primeira vez na vida. Foi um amor intenso como um tornado abatendo-se sobre uma vasta planície -, capaz de tudo arrastar à sua passagem, atirando com todas as coisas ao ar no seu turbilhão, fazendo-as em pequenos pedaços, esmagando-as por completo ..."

"Sputnik meu Amor" de Haruki Murakami

A PONTE DE ALCÂNTARA

Dia 29 de Junho de 2013




Enquanto uns demandavam o trabalho habitual (ou não) e as atividades culturais de verão, ao Largo ou mais por perto, andava eu empenhada em outras demandas, quando me surgiu a oportunidade de "tomar posse" deste monumento extraordinário: sem palavras, até à nossa viagem, excursão hipotética até Mérida, com passagem obrigatória por aqui! Vamos sonhando, para já com Kafka à cabeceira, a rondar-nos a vigília enredados no Processo e, pelos vistos (olha a desatualização) também à espreita numa de Metamorfose! Tenham medo...!








No Aniversário de Kafka

Doodle de hoje no Google

No próximo mês vamos ler "A Metamorfose" de Franz Kafka e o Google lembra-nos hoje do Aniversário do escritor, tendo para o efeito criado este doodle