« Sonho. Às vezes penso que é a única coisa que vale a pena. (...) Mas nunca dura muito tempo, a vigília acaba sempre por me trazer de novo à realidade.
Acordo às três da manhã, acendo a luz, sento-me na cama e fico a olhar para o telefone na mesa-de-cabeceira. Imagino Sumire numa cabina, a acender um cigarro e a marcar o meu número. (...)O telefone parece que vai tocar a todo o momento, mas continua mudo .(...)
Até que finalmente tocou. Ali, à frente dos meus olhos, tocou mesmo. Fazendo tremer e vacilar o ar do mundo real. (...)
-Estou?
- Olá, estou de volta- exclamou Sumire de um modo muito natural, muito real.- Aconteceu-me tudo e mais alguma coisa, mas lá consegui regressar a casa.(...)
-Onde estás?
-Onde estou? Onde achas que podia estar? Na nossa boa e velha cabina telefónica(...).
- Estou cheio de vontade de te ver- disse eu.
- E eu também (...)-repetiu ela.- Dei-me conta quando nunca mais te pus a vista em cima. Para mim foi tão claro como se de repente todos os planetas tivessem ficado alinhados à minha frente. Preciso mesmo de ti. fazes parte de mim e eu faço parte de ti.(...)
De repente, a chamada caiu. (...). Sento-me na cama e fico à espera de que volte a tocar.(...) O telefone não toca. No ar reina um silêncio incondicional,mas eu não tenho pressa. Não há razão para me apressar. Estou preparado. Posso ir seja onde for.
Certo?
Certíssimo!
(...) Corro as velhas cortinas desbotadas e abro a janela(...) Lá está ela, uma meia-lua em tons bolorentos, pendurada no céu.
Que bom. Estamos ligados à realidade através do mesmo fio. Só preciso de o ir puxando devagarinho para mim.»
Haruki Murakami,
Sputnick, Meu Amor, Alfragide, Bis- Leya, 2012, pp.262 a 264
Sonho ou realidade? Haverá ainda um laivo de esperança nesta trajectória dos satélites em órbita, ou a fantasia ocupa o vazio do real? Estaremos todos encerrados em cabines telefónicas, apartamentos, automóveis, discos rígidos de computadores, teclas de telemóveis ou como a pobre Laica, num satélite, que somos nós mesmos.
« (...) Fechei os olhos e prestei atenção para ver se conseguia ouvir os descendentes do
Sputnick que continuavam a dar voltas á Terra, tendo como único elo de ligação ao planeta a gravidade. Sol´tários pedaços de metal que se encontram de repente nas trevas do espaço, cruzam-se no seu caminho e depois separam-se para sempre. Sem trocarem uma palavra, sem fazerem uma promessa.» (p. 227)
Se calhar o melhor é aproveitarmos os momentos de impacto, quando os satélites saem do seu caminho estelar e caiem com estrépito sobre a terra; ou os reflexos da boa, velha e trocista lua, bolorenta ou brilhante, que se ergue nas nossas noites, por estes dias. E vamos puxando devagarinho fios dispersos... Certo? Talvez sim, talvez não...