13 junho 2014

A propósito do Aniversário do Poeta

Fernando Pessoa, por Almada Negreiros, 1964
[I]
Toda a entrada de estrada copada ao luar
Vai ter a Sonhar.
Mas é preciso chegar só a entrar, e a fruir;
Nunca prosseguir.
Porque é só a entrada da estrada que leva
Ao sonho que enleva.
A própria estrada só leva acabada,
A não haver estrada.

II
Passo depressa
Por onde
A água luz começa...
Passei.
Ter passado me esconde
O que mal avistei.
Mas na alma me resta
Um vago
Sorrir tardio, aresta
De sonhar
Luz de não sei que barco, pequeno, lago
Sob que luar.

III
Um riso na noite,
Riso de rapariga...
E a alma que não tem onde se acoite
Viu até à liga
A vida, o sorriso, a esperança...
Um riso na noite, mais nada...
Um riso que, por si, é criança,
Perna descalçada...
Um riso sem ninguém
Na noite onde o luar
Anda a procurar alguem
Sem o querer achar.
Um riso, colóquio, entrevista,
O olhar com que o houve
Toca-me no ombro com dedos
Que passam revista
Ao desejo... Assim aprouve
À grande noite sem medos...
Só um riso universal
De uma só boca
Invisível, essencial —
Um riso que me toca
Na cara, e ao meu ouvido
Que segredo perdido?

Iv
Deixa-os falar...
Da árvore pende
O balouço ao luar
Que ninguém pretende...
Deixa-os dizer...
Da alma alagada
Do luar vem ver
A alma sem nada...
Deixa-os sorrir
Se desejo, assim,
Sem te ver, sentir
Que sorris p’ra mim.

V
No parque para além do muro
Que nesta noite é incerto e escuro
Erro, mas sem o conhecer,
Nem onde erro ver.
Que importa? Estou onde me sinto,
Quem sou comigo apenas minto,
No parque além
Do muro há alguém,
Abandonado? Há muito ali
Já ninguém vai?... O que eu vivi,
Vivi; o mais... É certo
Haver parque deserto
Estando a alma perto?

In Poesia 1918-1930 - "Luar"  de Fernando Pessoa

1 comentário:

Maria Amélia disse...

Muito bom. Obrigada, Custódia