29 junho 2014

Ainda sobre «O Judeu»

Terminada que foi a nossa participada sessão de dia 27, atrevo-me a adaptar aqui algumas das ideias-chave expressas pelos nossos leitores, que julgo ter captado. Opinião quase unânime é que este «Judeu» não foi leitura fácil, dada a «espessura» do texto, o número de personagens, o seu pungente dramatismo e temática, as minuciosas indicações cénicas e o seu estilo «forte» e grandiloquente. De facto, arrisco-me a dizer que o tema é negro, como a capa da edição da Ática.



Santareno situa a sua obra na época de D. João V, rei absoluto e «Fidelissimus» da Igreja Católica Romana, época de contradições, como todas. O regime tridentino do séc. XVI vigora ainda sobre as consciências, discursos e acções, tendo como instrumento de eleição o famigerado Tribunal do Santo Ofício. E assim, a peça se inicia e encerra com a ameaça das suas fogueiras purificadoras do pecado, da heresia e do inimigo por excelência do cristão, o judeu. O judeu, ou antes o cristão-novo, o cristão que nunca abraçou verdadeiramente a religião vigente , o que judaíza em segredo, que mantém os ritos escondidos da «Velha Religião», será durante  cerca de três séculos o alvo mais visível (mas não o único, que a instituição era trabalhadora e empenhada) da Inquisição. E o pobre António José da Silva era cristão-novo (se é que poderia ainda denominar-se assim no séc. XVIII ). Quase toda a sua vida parece ter sido vivida sob o estigma da perseguição pela Inquisição, com prisões de grande parte da família. De facto, a peça situa-se cronologicamente entre 1726 (sua primeira prisão e auto-de -fé) e 1739 ( novo encarceramento, processo e execução). Santareno apresenta, entre estas duas balizas temporais e sob o pano de fundo da perseguição religiosa, as figuras e as histórias que marcam esse nosso séc. XVIII, do Magnânimo. Mas a marca essencial é a da opressão e do medo, corporizados no Santo Ofício, grato na sua função niveladora a um Estado, que quer governar sobre uma sociedade perfeitamente ordenada e sem «desvios», mal-grado as dúvidas morais de certos membros. Há certamente uma transposição simbólica entre este cenário e o do autor e do nosso país em 1966, data da peça. Vivia-se ainda sob o medo, a censura, o imobilismo, a opressão e o obscurantismo. E a denúncia e a delação continuavam a ser instrumentos dos regimes. 
D. João V  em 1729, por Jean Ranc, Museu do Prado

Mas a peça vive também de momentos mais leves: somos conduzidos pelo herege, exilado, velho amoroso, de pródigas façanhas, queimado pelo Santo Ofício à distância, Cavaleiro de Oliveira, espécie de coro, como no teatro clássico, relator irónico, ora sarcástico, ora nostálgico, indignado e desgostado, que da sua húmida Inglaterra, observa, comentando, o triste percurso do Judeu, que teima em viver e criar e das restantes personagens. E aparecem já espíritos «viajados», com outra visão que «beberam» do movimento iluminista europeu, cujo pensamento revolucionaria o Ocidente: Alexandre de Gusmão, D. Luís da Cunha, mentor de Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal , Conde de Oeiras e déspota iluminado, que neutralizaria a Inquisição , Luís António Verney...

Alexandre de Gusmão, 1695/1753
Luís António Verney, 1713/1792
D. Luís da Cunha, 1662/1749


De denotar que a obra encena «o teatro dentro do teatro»: é uma obra de um dramaturgo sobre outro dramaturgo, também perseguido e engloba excertos das peças de António José da Silva e os seus personagens, também personagens desta, ambos cuidadosamente adequados à estratégia de Santareno. Assim se  ilustra a crítica ao poder real no O Anfitrião, à justiça na Vida do Grande D. Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança, quando este último se torna governador na Ilha dos Lagartos, ao ensino escolástico na Esopaida, e à própria condição dos actores, tendo como pretexto As Guerras de Alecrim e Manjerona. Contudo, estes momentos das alegres peças do Judeu, são curtos momentos luminosos no negrume do tema da peça, que  pode ser tomada como um um libelo contra a escuridão que oprime a alegria,a juventude e a criação. E a liberdade de consciência.
Tantos foram os portugueses cristãos-novos que partiram durante séculos para uma Europa mais tolerante, sob os céus brumosos, mas livres e tolerantes do Norte, que, na época,  «Judeu» era quase sinónimo de «Português». Éramos o que esconjurávamos. Afinal somos todos «judeus».



António José da Silva, 1705/1739
 







4 comentários:

Manuel Nunes disse...

Todos judeus, até os que não leram o livro! Obrigado pelo "post", Paula.

Manuela Correia disse...

Obrigada Paula, gostei muito do texto. Creio que ainda continuamos dentro da cultura judaico-cristã, em muitos aspectos da nossa vida pública e privada. As tuas palavras ajudaram-me a compreender melhor a época que aflorámos nas nossas leituras. E complementam o que o Manuel nos disse na comunidade de leitores.

Paula M. disse...

Obrigada aos dois:).Vim para casa a pensar... e «postei» o texto, mas sem revisão, que já fiz neste momento.
É verdade, continuamos a ser «judeus» e a viver sob uma pesada culpabilidade judaico-cristão, como também referiu a Joca.
E um certo medo também. É irritante, para não dizer mais.

Custódia C. disse...

Muito bom Paula!

Como não podia ir à sessão não li "O Judeu" (e adiantei um Saramago que tinha entre mãos), mas gostei muito do teu texto bem elucidativo da época retratada.