03 fevereiro 2024

LEITURAS

 


O DRAMA EM GENTE

 

Fingiram todos,

todos me fingiram

e em tradição me deram

fingimento

 

É certo que eram outros

tempos outros,

em que ser muitos

era coisa ausente

 

Mas todos me fingiram

e ensinaram

que o comboio de corda

pode ser

de corda a sério,

 

não de coração

 

Também eu tive,

embora em outra esfera,

outras noites de verão

 

Nada lhes devo

e em tudo, embora,

devedor lhes sou

 

Que os séculos agora

lhes dêem o sossego

 

ou dêem nada –

 

Ou nem que seja

a dor do universo,

como a dor de cabeça

 

infinita, silente,

de que padeço para  sempre

e desde

 

que eles vieram

visitar-me os sonhos

 

- ANA LUÍSA AMARAL, Escuro, 2014

 

 

AUTOPSICOGRAFIA

 

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

 

E os que lêem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

 

E assim nas calhas da roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.

 

- FERNANDO PESSOA, Presença, nº 36, Novembro de 1932


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