O DRAMA EM GENTE
Fingiram todos,
todos me fingiram
e em tradição me deram
fingimento
É certo que eram outros
tempos outros,
em que ser muitos
era coisa ausente
Mas todos me fingiram
e ensinaram
que o comboio de corda
pode ser
de corda a sério,
não de coração
Também eu tive,
embora em outra esfera,
outras noites de verão
Nada lhes devo
e em tudo, embora,
devedor lhes sou
Que os séculos agora
lhes dêem o sossego
ou dêem nada –
Ou nem que seja
a dor do universo,
como a dor de cabeça
infinita, silente,
de que padeço para sempre
e desde
que eles vieram
visitar-me os sonhos
- ANA LUÍSA AMARAL, Escuro, 2014
AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
- FERNANDO PESSOA, Presença, nº 36, Novembro de 1932
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