06 novembro 2010

A (NOSSA) NOITE DO ORÁCULO - Paul Auster

Sessão da Comunidade de Leitores de SDR de 29 de Outubro de 2010

Se eu tivesse que explicar a alguém de fora, de forma detalhada (e não parcial, como costumo fazer sempre que tenho de apresentar a Comunidade), o que somos, entre outras informações, teria de referir o facto de todas as sessões resultarem diversamente e, por vezes, saldarem-se por inesperadas surpresas.

Diria que, pelo menos para mim, esta foi uma dessas, pois uma leitura que me deixou uma certa perplexidade (para não dizer desilusão), foi largamente compensada pela riqueza e variedade de pontos de vista resultantes da partilha dos participantes.

E porque nem sempre é fácil sintetizar as ideias que ali, à volta da mesa, se vão debicando entre uma bolacha e uma pinga de chá, resolvi, desta vez, fazer um pequeno exercício, que acaba por ser muito pessoal, já que passa por uma escolha, e pelas limitações dos registos efectuados.

Assim, pessoalmente, o que me cativa mais é o resultado do debate, as reflexões, extrapolações, sínteses e ideias novas que vão ali tomando forma e, às tantas, já não são deste ou daquele, mas nossas; o livro e a leitura são-no enquanto tal, mas também são objectos de apropriação— bastas vezes nos demos conta do nosso papel activo de leitores.

Ora o nosso Oráculo, que para mim não prenunciava nada de especial (embora estivesse na expectativa), deu origem a um interessante debate e, sobretudo, à emergência de algumas questões importantes, o que passo a sintetizar.

- Da leitura resultou em parte a sensação de que tudo era muito real; as histórias contadas como realidades umas dentro das outras, em que o quotidiano tinha um papel tão importante, que quase nos sentimos parte da trama.

- O que poderá parecer (a mim pareceu-me) uma composição de episódios sem grande ligação num conjunto sem coerência, revela afinal potencialidades inesperadas. Uma delas é a confiança, como valor que percorre toda a narrativa, sendo até o suporte do desenrolar das relações entre os protagonistas, incluindo o narrador (deste com a Grace, com o chinês, com Ed, etc).
Outro aspecto decorrente daquela aparente falta de remate das várias histórias que o autor põe em andamento sem lhes dar um final convencional, é o deixar muitas questões em aberto, remetendo para uma reflexão acerca da poética do inacabado, com tanta relevância na arte e no pensamento.

- A importância do sentido... porque, como diz o João, uma narrativa contém sempre uma promessa de sentido: neste caso, este seria, para o narrador, o amor pela mulher, o querer a todo o custo ficar com ela, que justifica tudo o que ele ultrapassa, num respeito exacerbado pela individualidade de Grace, na ignorância assumida do seu passado.
Por outro lado, a ideia, interessantíssima, de que o amor não se esgota, ainda que partilhado, e Grace está no epicentro do amor, entre dois homens que a amam. Como colocar esta questão, que é de ambiguidade, face aos preconceitos vigentes quanto a amor e fidelidade?

- Também se fala de sentido, quando se percebe que, na relação do narrador com a história de Bowen (por sua vez baseada na de Dashiel Hamett), também a ele lhe ia caindo em cima uma grande viga ou gárgula, simbolizada pela revelação da infidelidade de Grace! Ao contrário das histórias referidas, ele vai conseguir ultrapassar a questão e manter a sua primeira vida, dando expansão aos afectos (é essa a mensagem final do livro).
Um paralelo interessante é possível traçar entre o destino do protagonista de D.H.— que se limita a reconstruir uma vida familiar idêntica à que tinha, caindo na mesma rotina— e Nick Bowen, que acaba fechado num bunker, num beco sem saída (que é a própria vida, faça-se o que se fizer?).

- A possível premonição da escrita, o seu poder de antecipação, de predição (daí o Oráculo?)... O autor apresenta vários encadeamentos de coincidências. Quantas vezes nos acontecem também? Isso significa, de acordo com a desconstrução do tempo do autor, que cada um tem em si o passado e o presente, estando a cada instante grávido do futuro e, mais concretamente, “escrever é fazer as coisas acontecerem no futuro”?
A verdade é que são preocupações deste teor que levam o autor a destruir o Caderno Português e todo o seu conteúdo narrativo.

- Dir-se-ia também que um certo automatismo vai de par com a busca de sentido para a vida; trata-se de aspectos que não controlamos, como a inspiração (de onde vem, como interpretar o facto de os artistas se sentirem compelidos a produzir, como um sortilégio?); a força do acto criativo— usar a inspiração ou ser usado, na simbiose final entre matéria e universo, que é a obra de arte?

- Na desconstrução, patente na estrutura do texto, o autor põe a descoberto também as dificuldades do escritor, que, como homem comum, se defronta com problemas (de falta de inspiração?), e não consegue acabar o romance.
Neste caso, o autor parece ter recusado algumas saídas, que ocorrem ao leitor, como, por exemplo, tudo se tratar de um sonho de alguém em estado de coma. (Pelo contrário, o acto de escrever no caderno, pode concretizar um percurso de recuperação, uma autêntica profilaxia...).

Conclusão: já lemos todos os tipos de romances, dos românticos aos realistas e mesmo surrealistas... A Noite do Oráculo, que à partida apresenta algumas quebras de normas (reprodução da lista telefónica de Varsóvia como memorial; as notas de rodapé, com esclarecimentos importantes), aponta outra possibilidade, vindo ao encontro do leitor— qual o destino dos personagens, quais os desfechos? Tudo encerra uma grande liberdade, valor que vem de par com todos os já apontados e se inscreve na questão essencial que é a busca de sentido e a noção da fragilidade da vida, com a conclusão de que a confiança e o amor são preciosos, e que a vida é um milagre que se tem de agradecer.

2 comentários:

Manuel Nunes disse...

O romance, a mentira em que acreditamos, leva-nos sempre por múltiplos caminhos. Mais interessante quando confrontamos os nossos com os que outros escolheram, e é assim que percebemos a importãncia de uma comunidade de leitores. O texto que o autor nos doa é um corpo que os leitores permanentemente actualizam. Ninguém lê da mesma maneira, e às vezes até nos rendemos às leituras feitas pelos outros. Mas isto já está dito no artigo que aí ficou. Parabéns, Amélia!

Custódia C. disse...

Maria Amélia
Que bela estreia! A tua síntese levou-me de volta ao último encontro e à diversidade de registos e emoções que um mesmo livro provocou em nós.