Dia 17 de Abril de 2011, véspera do Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, este ano com o tema Água: Cultura e Património. Em Lisboa, no Museu de Etnologia, havia de se falar em património intangível, mais propriamente a música: o protagonista era o Tejo, que é sempre um rio apercebido como mar, como plataforma líquida de partida, mas também de chegada, chegada de pessoas vindas de longe, ideias e coisas, novas e diferentes, que foram sendo acolhidas e assimiladas, na roda-viva das miscegenações e das sínteses culturais ao longo da História.
Em Tomar temos um rio, que não é o Tejo... mas temos um rio e água-viva, que deu a seu tempo energia a muitas e antigas indústrias.
Mas em Tomar também temos um admirável exemplo de sínteses artísticas, de uma época em que o governo do país não assentava arraiais só na capital, e a realeza tinha locais de estimação, de devoção, de preferência. D. Manuel, por exemplo, estimava esta cidade, este assentamento militar religioso para além da sua utilidade prática. Algo parecia atrair as atenções sobre este lugar, desde D. Afonso Henriques “acolitado pelo fundador de Tomar, o grão-mestre templário Gualdim Paes”; o Infante D. Henrique, assumindo o cargo de administrador da Ordem de Cristo; D. Manuel, “que procedeu a uma autêntica refundação da ordem” e do convento; D. João III, que adoptou o estaleiro de construção para brincar às arquitecturas... até ao próprio Filipe II de Espanha, que escolhe este sítio simbólico para realizar as Cortes em que é reconhecido rei de Portugal.
Ora não se pode falar em Tomar, sobretudo do complexo do castelo e convento, sem fazer uma referência, ainda que superficial e em primeiro lugar, a alguns aspectos da história dos Templários, continuada que foi em Portugal pela Ordem de Cristo. Em segundo lugar, honra seja feita aos verdadeiros construtores destas maravilhas: os arquitectos, os mestres, os pedreiros, os canteiros, que todos eles contribuíram, uns com a arte e o intelecto, outros com o esforço físico e o suor do corpo, tanto ou mais que a arte, pois não são de pedra estas cidade, mas de mãos.
Baseando-nos nas abordagens científicas do historiador de arte Paulo Pereira, longe de fanatismos e falsas certezas, mas desmistificadoras sem deixarem de ser imaginativas e sensíveis, fornecendo chaves de leitura, vale a pena destacar alguns aspectos menos divulgados, observações parciais e conclusões, sobremaneira interessantes para uma certa forma de olhar este património.
Temos então uma ordem religiosa e militar, a Ordem do Templo, que nos é apresentada como “um mito europeu”, “uma das lendas fundadoras da Europa”, o que, desde logo, nos remete para o universo da Memória Colectiva, assumindo um cariz unificador em relação a um vasto território, a Europa, convocando ao mesmo tempo também outras regiões— a Terra Santa em destaque, e remetendo também para outras culturas— marcam presença o Mediterrâneo nos seus contornos não-cristãos, o Oriente médio, a Arábia...
Teve a Ordem dos Templários origem, no século XII (fundada em 1118 por Hugues de Payens e outros cavaleiros, entre os quais talvez figurasse um português), num movimento de defesa e protecção dos peregrinos cristãos que se deslocavam à Terra Santa, “no quadro do estabelecimento do reino cristão de Jerusalém”, movimento que é também cavaleiresco e de perseguição do mito (o do Santo Graal).
A sua existência, de menos de cento e cinquenta anos, ficou marcada por uma memória de mistério e segredos nunca desvendados, e o processo, a forma abrupta e violenta da sua extinção (iniciada a 13 de Outubro de1307 por Filipe, o Belo), sugere um clima de intriga sombria, mas também de ódio e de receio, perante o crescimento de um poder (sobretudo bancário), que parecia imparável.
A sua extinção, “fantasma que assombra a cultura ocidental”, alimentou uma história mítica que, sobretudo desde o século XVIII, nunca mais deixou de produzir e reproduzir teorias esotéricas, hermetismos, práticas ocultistas, convocando o fundo obscuro de medo (tendo como epítome as teorias da conspiração), a Idade Média que mora no inconsciente colectivo e individual.
Também a literatura se tem vindo a apropriar desta temática— basta pensar em Umberto Eco (O Nome da Rosa; O Pêndulo de Foucault); e os saberes que a tradição, por via iniciática, têm transmitido de geração em geração, são objecto de estudo para muitos especialistas— de mística e gnose; da continuidade franco-maçónica; de iconografia e iconologia, etc.
Em Portugal, no contexto territorial de implantação de lugares templários, “Tomar, a sua sede, possui a categoria de grande centro, de centro do mundo e eixo desse mundo, situada sensivelmente no meio das terras de um território que se constitui num reino de fronteiras estáveis nos finais do século XIII— precisamente quando se dá a extinção da Ordem do Templo e lhe sucede, com um êxito inesperado, a Ordem de Cristo”. Para o autor, será o lugar mágico por excelência, o lugar dos lugares todos, quiçá o último reduto europeu do templarismo.
Depois da queda de S. João de Acre, em 1291, desaparece também o reino cristão de Jerusalém, e o papel militar dos Templários só vai manter-se em Portugal e Espanha, sendo provável que já por volta de 1125 combatessem no território do Condado Portucalense, continuando depois, em conjunto com outras ordens militares, a colaborar nas lides de conquista e reconquista, e no esforço de povoamento. Distinguem-se na conquista de Santarém, em 1147, já detentores de vastas áreas, na sequência de doações régias (com determinação das regras a que obedeceriam as suas actividades).
É nesta altura que Gualdim Paes se torna grão-mestre da Ordem, e são fundados os castelos de Pombal, Tomar e Almourol. Daqui em diante, em consonância com a coroa, os domínios e o poder económico da Ordem crescem sempre, mas um certo carácter “nacional” e a autonomia em relação à sede francesa, vêm condicionar o desenrolar do processo contra os Templários em Portugal. Aqui a instauração é lenta; apenas por obediência à bula papal se estabelece um tribunal que nada encontra de relevante para a condenação e, em 1309, é emitida uma sentença real que decide o regresso à coroa das possessões templárias, ficando estas, no entanto “reservadas”. Logo depois da extinção, D. Dinis funda a Ordem de Cristo, na qual são reconduzidas todas as pessoas aos seus cargos e consignados os bens da anterior organização, voltando pouco depois a sede a Tomar. Terá mudado apenas o nome e, de acordo com Paulo Pereira, a haver “projecto templário”, é em Portugal que ele se realiza, no patrocínio da expansão cristã pela Ordem de Cristo, através da empresa dos descobrimentos.
Tomar distingue-se entre os Altos Lugares Templários— Almourol, o paradigma dos castelos; castelos de Castelo Branco, Longroiva, Mogadouro e Penas Róias, Monsanto, Pombal, Soure, Castro Marim... para não falar em Monsaraz e Idanha-a-Velha. São muitas vezes lugares já sacralizados pelo paganismo, aqueles a que o processo de cristianização dá continuidade funcional e religiosa.
Enquanto a fundação da cidade, no sopé do monte, em zona de vale, terá a ver com um assentamento romano— talvez Sellium, município assinalado no Itinerário de Antonino do século III—, o castelo, situado no alto, em promontório, corresponde, quase certamente, à primeira ocupação humana do território; relacionado com o caminho de festo, mas também com uma posição estratégica de domínio e defesa, esta localização é retomada no período visigótico e de ocupação muçulmana, onde, ao abrigo das muralhas, terá florescido uma pequena povoação.
É neste mesmo lugar, preexistente, que, em 1160, no primeiro dia do mês de Março— mês de Marte, deus da guerra— Gualdim Paes, mestre-procurador da Ordem do Templo, lança a primeira pedra do castelo templário, determinando o desenvolvimento posterior da região, a partir da vila, que se expande ultrapassando as muralhas, logo no século XIII.
Na implantação deste castelo, na sua configuração, têm os estudiosos da Geomancia (ciência antiga, ligada à escolha dos lugares propícios à fundação de um edifício, conjunto edificado ou cidade) visto uma aplicação de “regras aritméticas, bases da ciência hermética dos Templários...”, descobrindo nas proporções gerais, na disposição-alinhamentos-angulação dos elementos principais, sobretudo a relação entre a Charola e os pontos marcantes da fortificação, referências ao carácter próprio da arquitectura sagrada. Nomeadamente, e a título de curiosidade, a especulação do autor citado, Maurice Guingand, leva-o a identificar, na planta invertida do castelo de Tomar, a configuração exacta de uma constelação, o Boeiro, traçando igualmente uma autêntica roda celeste a partir da convergência das constelações principais no centro da charola, coincidindo com alinhamentos em relação às torres das muralhas, facto que terá transformado esta construção “num observatório celeste”...
5 comentários:
Maria Amélia
Há coisas que têm um parto difícil, mas que depois ficam mesmo muito bem...
O teu texto é um complemento precioso a tudo o que vimos, ouvimos e sentimos em Tomar.
Aguardo a continuação...
Nesta primeira parte, uma boa síntese histórica e artística com o mito em pano de fundo. O mito é o nada que é tudo - lá dizia Fernando Pessoa na "Mensagem"
A propósito, tenho vindo a descobrir que, fazendo um pequeno desvio em relação ao poeta, "o Mito comanda a Vida", hoje também, ou ainda...
Muito bem Amélia. Agora há mais luz de conhecimento sobre Tomar. E não só Tomar; não são de pedras as cidades, mas de mãos.
Gostei muito da parte I. Trabalho, persistência e inspiração.
Enviar um comentário