03 maio 2011

CALISTO ELÓI / CALISTO MARCELINO

A propósito do nosso Calisto Elói, aqui fica este texto de CRISTINA LEIMART sobre outro Calisto:

(Publicado no blogue "Emoções Básicas" em 30 de Janeiro de 2011)


CALISTO MARCELINO


Desde as 9h15 que o seu pessoal o esperava para a primeira reunião após a notícia da nomeação. Mas o hábito de começar o dia a meio do dito não cede assim ao sabor dos despachos ministeriais. E eram 11h50 quando Calisto irrompe pela porta do gabinete alcatifado. Nesse momento já o concílio ia avançado na discussão de estratégias de base, mas para o nomeado a prioridade era outra:
- "Doutor Calisto Marcelino"... Não... "Doutor Covas de Marcelino"... "Doutor Calisto Covas"... Não, nem pensar. Atenção, atenção! - O homem raciocina à custa de uma estonteante e ininterrupta, quase desesperada, alternância de pequenos passos de avanço e recuo. Olha em redor para o pequeno grupo de pessoas distribuído informalmente pelo gabinete. - Ordem na sala, por favor.
Calisto Covas de Marcelino não estava nervoso, apenas medianamente eufórico. Anos de espera, acabado de dobrar os quarenta, e ei-lo que finalmente subia mais um degrau na hierarquia do poder público. Começara como jovem idealista da ecologia, mas rapidamente se submetera ao dinheiro fácil, às concessões aos interesses económicos e à vaidade pela fama. Com o primeiro montara uma empresa de consultoria em projectos ambientais, estudos de impacte, planos de ordenamento territorial e afins, que geria a par das suas funções como técnico superior do estado. Comentava-se que lhe chegavam às mãos projetos de clientes seus da privada, sobre os quais lhe competia emitir parecer técnico imparcial, situação nada incomum na nossa administração. Mas o importante era estarem-lhe reconhecidas capacidade de trabalho e força empreendedora, qualidades que se aleavam à sua tendência bajuladora para lhe granjearem um estado de graça inicial nas suas várias tentativas de carreira na função pública. Destas, algumas abruptamente interrompidas por um intriguismo compulsivo, retirava ele três novos items para a caixinha das experiências da vida: mais amizades femininas, mais oportunidades de euros não declaráveis e mais ocasiões para fingir bom perder. Mas a presente nomeação fazia tudo isso valer a pena.
- Atenção, pessoal, que isto é importante: é o nome pelo qual o país me vai conhecer daqui para a frente! - Abre os braços em demanda de atenção: - É um nome de guerra. Tem de soar bem, sobretudo soar e ressoar nos media. A aparência, só, não chega. Vocês têm consciência de como esta nomeação me aproxima da meta de secretário de estado, certo? Isto não é só para mim: subo eu, subimos todos. O país precisa de sangue novo, fresco, pá - Vira-se urgente para a assessora: - E eu preciso de dois apelidos. Estela, dois apelidos! Toda a gente que se preza faz-se apresentar por dois apelidos. O tempo dos José Matias e dos Carlos Sousa já foi.
Perpassa pelos belos olhos azuis de Estela Arnaud, desde a primeira hora contactada para assessora de imagem, um laivo de troça:
- Ó chefe, você perdoe-me, mas esse apelido da família da sua mãe não lembra ao diabo. De todo! "Covas", acha isto normal?
Nem todo o espírito de conveniência em agradar a um recém-nomeado pelo ministro da tutela evita o reverberar de risos na sala. Toma a palavra o assessor número dois, Urbano Martins, recrutado à pressa dos tempos da faculdade:
- E é que o teu nome próprio também não ajuda nada, pá, agora a sério!
Calisto sente a exasperação a subir e abre os braços como quem vai parar uma locomotiva. Afasta a franjinha, tique antigo.
- Agora que já se divertiram, posso contar com alguma destreza mental para me avançarem com uma solução? "Calisto" vem do fascínio da minha mãe pela história grega."Covas" é outra história antiga de um bisavô meu que... Eh pá, mas já nos estamos a desviar do assunto!
Os presentes entreolham-se. Com a matéria-prima disponível, será difícil parir um nome apresentável. E é o que lhe transmitem. E também que o nome, apesar de tudo, não se revela assim tão determinante no sucesso e no respeito ao detentor de um cargo público. É mais relevante uma certa atitude e... Calisto impacienta-se:
- Eh pá, calma! Eu quero fazer as coisas bem feitas. E se... Inventa-se um apelido do meio! Ávila, por exemplo. Quem é que vai saber se é verdadeiro ou não? - Alonga o olhar pelo poster com o delta do Nilo e ensaia: - Ávila Marcelino... "O doutor Calisto Ávila Marcelino será..."
- Ó chefe, isso não é possível! De todo! - Estela entesa-se no sofá de couro, com um sorriso desajeitado. - Ai eu vou fingir que não ouvi isto! Então na nomeação do diário da república já aparece o seu nome completo, é obrigatório. Vem aqui, olhe...
Num saudável gesto de curiosidade, o novo director arranca o exemplar da mão da colaboradora, deixando-se cair na cadeira de design moderno em pele e cromados. Afasta a franjinha. Arregaça as mangas da camisa como se o esperasse uma tarefa árdua. Está habituado a moldar a realidade à sua maneira, a cozinhar conveniências, a fabricar as verdades. Desagradam-lhe estes pequenos reveses logo na primeira manhã. E lê na olíqua, voz a meia haste, o conteúdo da nomeação:
- "Diário da República, 1.ª série, decerto-lei de 2009, 13 de Fevereiro, hmm tal tal, hmm, é nomeado, pelas suas notáveis qualidades de organização, capacidade de trabalho, ah!, experiência e bom relacionamento interpessoal, ah!, hmmm, etc etc, o licenciado Calisto-Covas-de-Marcelino, pois, cá está a porra, técnico superior do quadro deste ministério, sim sim sim sim, para provir o lugar de director da equipa técnica e de gestão da Paisagem Natural do Lago de Simboa, exacto, sim senhor, tal tal, este despacho entra em vigor no dia útil imediato ao da sua publicação, isso já sabe, assim e assado, o ministro do ambiente, recursos naturais e território ordenado, fulano..
Sopra ruidosamente, como que para afastar as evidências. O nome que lhe destinaram à nascença parece agora um beco sem saída repleto de ironias.
Vale-lhe o assessor, cheio de bom-senso:
- Calisto, o que não tem remédio é para esquecer. Depois estudamos umas manobras de marketing para compensar essa infeliz composição. - Contorcem-se-lhe as vísceras por baixo da camisa de popelina azul-clara, mas mantém a postura: - Fica Covas Marcelino, pronto. Sai assim no press-release e serve para os jornalistas à porta da cerimónia da tomada de posse. Alegra-te por não seres Covas Silva ou...
- ... ou Pereira... - participa Estela, já embrenhada no próximo ponto da agenda.
- ... ou Covas Lopes... - adianta a secretária, que ainda não entrara activamente na cena.
- ... ou Cov... - recomeça o assessor.
- Eh pá, vão à merda!
Felizmente nomeado mas infelizmente denominado, Calisto sai porta fora. Intempestivo e rosado, com a indiferença da secretária, para divertimento do assessor e apesar de Estela, inconformada:
- Urbano, você acha isto normal?!


= Texto de Cristina Leimart =

8 comentários:

Custódia C. disse...

O peso do nome que carregamos nas costas :)

Manuel Nunes disse...

Calisto - o que dá azar ao jogo.

Maria Amélia disse...

Parece que o Calisto que dá azar ao jogo tem sorte aos amores...à filha da... da política! (O L.A. di-lo-ia com todas as letras!). Cristina: bom retrato "tragicómico" dos ambientes que crassam nos gabinetes da chulice sem pudor do poder.

Manuel Nunes disse...

...impoluta.

Maria Amélia disse...

Nem mais.

Manuela Correia disse...

Parabéns Cristina. Há tantos temas e tantos nomes inspiradores por aí, a começar pelo filósofo Sócrates e pessoas com, por exemplo, nome de árvores. Imagino a cena: Atenas, calor de Agosto, Sócrates fala com o Oliveira, acerca do Nogueira que emprestou dinheiro ao Pinheiro, que se zangou com o Pereira, etc...Dá asas à imaginação. Eu gostei do teu texto.
Manuela

Cristina Leimart disse...

:)) Olá Manela. E eu gostei do teu! Este texto retrata a camada da política que eu conheço melhor, por experiência directa - a intermédia, que sustenta a outra.

Amélia e Manel: não há palavra mais impoluta que o espectáculo a que temos assistido nos últimos anos. Bjnhs

Manolo, c disse...
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